segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Pensando alto sobre o tempo, a História e as crianças


Escrevi a 1a parte desse texto pensando em professores que tive o prazer de conhecer nas últimas semanas e na companhia de quem passei um pedacinho do meu sábado. Obrigada por me ouvirem!

Pensando alto sobre o tempo, a História e as crianças

As crianças trazem para a escola muitas noções de tempo. Isso significa que não somos nós – professores e professoras – que começamos a lhes ensinar o que é o tempo, esse fundamento da História. São os pais, os avôs e avós e as pessoas que cuidam dos meninos e meninas que ensinam o antes e o depois, o enquanto isso, o daqui a pouco, o só amanhã. Nas conversas da cozinha, na olhadela para o cercadinho, nas histórias que contamos à noite[1], antes da mamada, depois..., pela linguagem, as crianças enfrentam o tempo.
Enfrentam-no também na imagem, contemplando fotos, nos celulares, TVs, computadores e nos álbuns de família. Mas a imagem não fala por si, ela é completada por narrativas. Ora, outra vez a conversa, com seus antes e depois, suas simultaneidades, seu tempo longo, curto, imemorial! Portanto, antes de preencherem o calendário da escola, marcarem seus aniversários, tomarem posse da própria agenda, elas sabem muitas coisas sobre esse senhor tão bonito, invisível mais visível de nossas vidas. Falam o tempo, contam-no!


A mulher na foto é Pérola de Paula Sanfelice. A criança que cresce em seu ventre é a Pétala Sanfelice. A Foto é da fotógrafa Dani Starck. Agradeço a gentileza de poder iluminar minhas pobres palavras com essa imagem de plenitude.

Se sabem tantas coisas, o que podem aprender mais? Um universo de possibilidades! Aí começa o trabalho da escola. A escola deve se tornar o laboratório da experimentação. Ela é uma vida fora de casa, mas ainda muito protegida, mesmo quando ela mesma não é protegida pela comunidade ou pelo poder público... Daí, eu ter falado em laboratório e experimentação. Nós, professores e professoras, contemplamos a diversidade de noções sobre o tempo trazidas por nossas crianças e colaboramos para incrementar esse repertório.
A primeira coisa que devemos procurar fazer para colaborar com nossas crianças é desnaturalizar nossas próprias práticas. Se o tempo passa para nós de forma irrefletida, e esse se não é um julgamento, mas uma atenção, é mais fácil repetir, deixar-se cegar. Apresentar o calendário, pintar-lhe os dias, destacar aniversários, o próprio aniversário (do professor ou da professora, afinal parte do grupo!) e colar recados na agenda não podem ser tarefas irrefletidas. São práticas compartilhadas que merecem reflexões.
São ricas as reflexões que podemos fazer a partir de cada prática. Uma das minhas favoritas é a espera. É uma bela aprendizagem a espera! Bela e difícil:

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
(“Das Utopias”, Mário Quintana)

As crianças devem esperar pelo recreio, devem esperar para se despedirem de nós com seu até amanhã, devem esperar para vir para a escola outra vez, devem esperar seus responsáveis na porta da escola para irem para casa, devem esperar seu aniversário chegar! Esperar é ansiar pelo futuro! Uma das dimensões mais bonitas do enfrentamento com o tempo é o desejo.
Assim, na escola “herdamos” noções de tempo, incrementamos essas noções até virarem conceitos interdisciplinares e elaboramos a espera, forjadora de futuro. Como podemos compreender essa experiência multidirecional? Podemos sintetizá-la no que foi definido por Jörn Rüsen como aprendizagem histórica. De forma geral, trata-se da “consciência humana relativa ao tempo, experimentando o tempo para ser significativa, adquirindo e desenvolvendo a competência para atribuir significado ao tempo”[2]. A escola promove, assim, a aprendizagem histórica para a construção de sentido ou para a construção de uma experiência muito sofisticada: a consciência histórica. Por consciência histórica, ele entende a “atividade mental da memória histórica, que tem sua representação em uma interpretação da experiência do passado encaminhada de maneira a compreender as atuais condições de vida e a desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência”[3]. Destaco memória, essa lembrança afetiva das coisas; interpretação, o pensamento particular sobre o experenciado, a compreensão, o entendimento racional da experiência e a perspectiva de futuro, um direito que pertence às crianças.
Quando eu afirmei que a construção é sofisticada, eu estava interessada em dois sentidos dessa palavra chique (ou afetada...): a sutileza e a originalidade! Para mim, há tempo na sutileza. Então, a consciência histórica é um trabalho no tempo, é um investimento delicado e paulatino, que envolve muitos agentes e muitos saberes. Da originalidade, gosto do que é único, pessoal. A construção da consciência histórica não é um conteúdo da aula de História, mas um investimento da escola. E, a propósito, também é toda a aula de História! É uma construção de cada ano, que acompanha o crescimento de meninos e meninas e sua a experiência de vida, única, e passível de ser compartilhada no dia-a-dia.
Compromisso da escola, rotina da aula de História. Rotina aqui nada tem a ver com coisa sem sabor. Não vejo paradoxo em desnaturalizar o que entendemos por rotina! Essa desnaturalização pode reabilitar os sentidos de caminho que se utiliza normalmente e de conjunto de instruções, o que nos leva ao método.
A consciência histórica vivenciada na rotina escolar e na disciplina histórica enraíza as crianças na sua própria história e as vincula a uma história maior, da qual ela (pode aprender que) é partícipe e autora. Daí a necessidade de trabalhar sem pressa com a ampliação das durações, com a distinção entre contos de fada e realidades de maior distância no tempo[4] e com a consciência de que ser partícipe e autor é ter responsabilidade.
A consciência histórica é uma tomada de consciência do meu estar no mundo e defender a sua relevância na vida dentro e fora da escola é para mim garantir que crianças, jovens e  adultos tenham direito a uma história maior que a sua, decerto, mas que lhe pertence como sua, porque está à sua volta e dentro do seu coração, desde o primeiro antes e o primeiro depois aprendido de um adulto cuidador e contador de histórias.

***

Ano passado, escrevi um ensaio sobre o tempo na Literatura infanto-juvenil. Compartilho com vocês agora:

Sobre o TEMPO na Literatura Infanto-juvenil

Escrevi sobre o tempo para adultos e para crianças. Para os adultos, no Diálogo sobre o tempo: entre a Filosofia e a História com o filósofo Jelson Oliveira (dentro da coleção “Café com Ideias” da Editora PUCPRess, publicado em 2015); para as crianças na coleção TEMPO: Identidade, Alteridade e Memória, os Livros das coisas para guardar (Ed. Positivo, 2013). No Diálogo, nós escrevemos que “o tempo é nossa dor principal. A saudade ou o lamento do que foi, o transitório do que é, o perigoso do que será” (pág. 21). O tempo está nas flexões de nossos verbos; em expressões denotadoras de intervalos; na relatividade; foi tripartido pelo historiador Fernand Braudel[5]... O fato é que “as concepções de tempo são temporais não apenas na medida de nossos afetos, mas também das possibilidades científicas dos contextos” (pág. 49); “se o tempo existe, as sociedades construíram maneiras diversas de lidarem com a duração” (pág. 53) e com a surpresa das transformações que se operam em nós. A Literatura é certamente uma das formas mais singulares de compreender o tempo à nossa volta e em nós mesmos.

Escolhi dois níveis de discussão do tempo nas narrativas que têm como alvo as crianças: um tempo “perdido”, quase imóvel na sua distância, pelo menos na perspectiva dos meninos e meninas muito pequenos, mas que seus professores e pais podem reconhecer vinculado a tradições antigas, no Brasil: tradições ibéricas medievais, indígenas e africanas, sobretudo; e um tempo que passa dentro da diegese: na sucessão das ações, no envelhecimento dos personagens ou na evidência de sua diferença etária (em relação aos outros personagens e em relação à própria criança leitora). Singularizo esses tempos na obra do autor brasileiro Ricardo Azevedo, também publicado em Portugal. Um dos aspectos da problemática do tempo me levará rapidamente ao meu livro Menina com brinco de folha (Vitória (ES): EDUFES, 2016). Por fim, gostaria de propor uma síntese provisória das pistas que essas obras que têm como público alvo as crianças nos oferecem para a discussão do tempo como tema central da Filosofia e da História.

TEMPOS CONJUGADOS NA OBRA DE RICARDO AZEVEDO

O primeiro nível de discussão – daquele “tempo perdido” – pode nascer da leitura de muitas obras de Ricardo Azevedo, que é também um pesquisador das tradições culturais brasileiras. Dentre essas muitas obras, destaco: A vida e a outra vida de Roberto do Diabo, cujo subtítulo é “versão de um conto popular” (Ed. Scipione, CIDADE, 1988), que por sua vez pertence a uma coleção intitulada “Histórias de encantamento”; o Bazar do folclore: tradição popular (São Paulo: Ática, 2001); os Contos de enganar a morte (São Paulo: Ática, 2003) e os Contos de Bichos do Mato (São Paulo: Ática, 2005). Na conversa com o leitor, que encerra A vida e a outra vida de Roberto do Diabo, Fanny Abramovich escreveu sobre a coleção: “Histórias de encantamento, causos, contos que o povo conta e reconta de jeitos diferentes, atravessando todas as geografias e séculos, mostrando a sua sabedoria, o seu conhecimento enraizado e folhudo (...). Histórias que vêm da tradição oral brasileira, ou europeia, e que foram sendo traduzidas pelo imaginário popular” (“Conversando com o leitor”, pág. 44).

  O Bazar do folclore integrou o projeto Biblioteca da Escola do Ministério da Educação, ou seja, beneficiou as escolas e as crianças com a distribuição gratuita de livros. Na seção final, “Conhecendo melhor o assunto e o autor deste livro”, a editora refere a pesquisa sobre o folclore que Ricardo Azevedo veio a fazer de maneira sistemática a partir de 1986 (A vida e a outra vida de Roberto do Diabo é de 1988). Trata-se de um livro em que coisas diferentes convivem, desde quadrinhas, contos, frases feitas, ditados populares, adivinhas, imagens e até receitas culinárias (como a receita de pão de queijo, de quindim, de bolinho de chuva e de cocadinha). 

Ao final dos Contos de Bichos do Mato, em “Algumas palavras do autor”, Ricardo Azevedo afirma que as narrativas “falam sobre a luta pela sobrevivência (e sobre o amor à vida) e foram criadas e recriadas principalmente por gente do povo, gente humilde vivendo em condições precárias” (pág. 103); sua luta abrigaria a semente do autor chamou de “moral popular” ou “moral ingênua”, que não raro desvela situações de injustiça social. O autor apela ao leitor para que conceba as histórias de Contos de Bichos do Mato “num contexto histórico e social específicos”, antes de taxá-las de “politicamente incorretas” (pág. 104).

Gostaria de referir três contos deste livro, trazidos aqui dentro do enquadramento do tempo “sem tempo” dos contos de fadas, e singularizar o tempo como elemento das narrativas. Em “O macaco e o grão de milho”, há a técnica de acumulação de elementos muito comum na literatura infantil, bem como nas cantigas de roda: o macaco protagonista pede ao pedaço de pau que lhe dê o grãozinho de milho; mas o pedaço de pau não quer dar; então o bicho pede ao machado para cortar o pau; que não quer atender também; o macaco pede ao fogo e por aí vai até chegar ao rato. Este foi o único que aceitou fazer o favor para o macaco. Outro detalhe, é pela vaidade de não ter as suas lindas saias rasgadas e roídas que a mulher do açougueiro despoleta a cadeia que dará o grão de milho ao macaco. Na obra, há muito de fábula em que bichos e humanos se misturam, conversando e interferindo na vida uns dos outros.

Então singularizar a perspectiva do tempo sem tempo, imemorial, na percepção das crianças, nessas obras não significa que na diegese a problemática do tempo não apareça de forma relevante. Assim, em “Forró no céu” (ainda em Contos de Bichos do mato), o sapo protagonista se anima para a festa, mas não tem asas que pudessem conduzi-lo até o céu. Sua tristeza é aguçada pela sucessão de aves que ele encontra, todas que seguiam em direção à festa, mas também pela passagem do tempo...: “passou um tempo, veio a garça”(pág. 15); “passou um tempo, veio a andorinha” (pág. 15). Graças a um estratagema, o sapo consegue ir à festa e a duração é representada na coleção de ações festivas e pelo polissíndeto: “E o sapo caiu no forró e dançou e brincou e sapateou e pererecou e rebolou e cantou e bebeu e comeu e cansou e sentou e deitou e dormiu” (pág. 16). Deu até para sentir saudades de casa... São personagens da trama São Pedro e Nossa Senhora, da tradição católica.

Tão interessante quanto o conto “Forró no céu”, é “O filho da filha do bicho-preguiça”, cuja graça é toda promovida exatamente pela expectativa da demora do personagem e pela surpresa ao final (que supera a nossa expectativa!), tendo o tempo em sua essência: o pai bicho-preguiça saiu para buscar uma parteira (bicho-preguiça também) para a sua filha, em trabalho de parto. Quando conseguiu voltar com a ajuda, escutou uma barulheira na casa: “Eram os filhos do filho da filha do bicho-preguiça brincando devagarinho no terreiro.”(pág. 19).  

Em relação ao segundo nível de problematização do tempo, gostaria de referir duas obras: Chega de saudade de 1984 (São Paulo: Ed. Moderna, 1984) e Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas de 1998 (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998). Na primeira, singularizo o capítulo “Conversa na cama”, todo realizado a partir do discurso direto. Os personagens, irmãos, conversam sobre a avó, sobre mudanças na vida dela: “antes ela era tão legal, fazia biscoito, contava estórias...” (pág. 13), mas parece que tudo mudou depois que o avô morreu. Há considerações interessantes no bate-papo das crianças: “Deve ser chato ser velho... tá louco! Ficar sem fazer nada!” (pág. 14), ao que o outro personagem retruca: “Mas a vovó dá aula na escola” (pág. 14). A sombra da decrepitude sempre volta à baila, como quando o personagem que lamentou o envelhecimento lança a hipótese: “será que gente velha dá aula pior?” (pág. 14). Os cuidados com a avó aparecem também na alusão à recomendação do pai dos personagens: “não deixar vovó subir escada sozinha de jeito nenhum” (pág. 14)... Ligada ao envelhecimento, a morte não é abordada apenas como possibilidade da mudança da avó, mas como possibilidade de adentrar o céu e o inferno. O avô morto dos personagens teria afirmado que o português que morou na casa foi “direitinho pro inferno” (pág. 14). No final do capítulo, os personagens não conseguem ter certeza sobre se a morte do avô fora a razão da mudança da avó, pois um outro namorado é aludido... (pág. 15).

No capítulo seguinte, “Lembranças, lembranças”, lemos a perspectiva da avó. Em um trecho, ela afirma:

“Quando a gente está triste, fica tudo ruim. Parece um beco sem saída. É só parar e lembrar... Vejo que fui feliz assim, assim, assim; fiquei triste por causa disso, disso e disso; resolvi um problema de um jeito; outro, de outro. Agora, o que eu não posso é ver as pessoas me tratarem desse jeito. Só por causa da idade. Sei de velhos que estão mal. Sem memória. Com problemas de saúde. É gente que não se cuidou, foi infeliz, por azar pegou uma doença grave; ou foi miserável, não teve nada, passou fome. Aí é difícil. Quando envelhece, sofre mesmo. Mas eu? Justo eu que me sinto tão bem! Fiz tanta coisa. Lutei para ser feliz. Tive sorte de ter tido casa, comida, carinho. Sentir nos olhos das pessoas aquele ar de pena! Qualquer coisinha, a gente vai passar mal; qualquer ventinho, vai pegar pneumonia. Outro dia, no banho, escorreguei e caí sentada. Não contei a ninguém, senão ia ser um deus-nos-acuda de médico, radiografia... Doeu uns dias e passou. Claro!”(pág. 17). 

Essa obra lança mão de outros gêneros textuais, como cartas trocadas entre os personagens e aborda a redescoberta do amor na maturidade. As cartas trocadas entre filho e mãe – avó das crianças de “Conversa na cama” – revelam expectativas muito diversas. Em uma carta do filho: “Mamãe, será que você não percebe que é loucura? Não tem cabimento. E se você passar mal? E se cair e quebrar a bacia? Como vai ser? Quem vai socorrer? O Araújo?”. Em uma das cartas da avó para a família: “Meus queridos, este mês completa um ano que estamos longe de casa. Não podem imaginar quanta coisa interessante temos visto e vivido esse tempo todo! (...) Estamos tirando fotografias, fazendo gravações e anotações. Vocês vão ver na volta. (...) Casei com o Araújo no mês passado, numa cidadezinha esquecida do mundo...”. A carta dos netos é extraordinária e depois da saudade, das notícias de nascimento de filhotes e pedido de presente, eles perguntam: “vovó, você está grávida? O caramujo virou nosso avô?” (pág. 58).

Em Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998), são reunidas seis perspectivas sobre uma vizinha, a velhinha do título: escritora de histórias para crianças; bruxa; dona de casa, “casada há quarenta e oito anos”, com cinco filhos (pág. 13); professora de ginástica, que beirando os oitenta anos, com o histórico de uma única doença na vida (caxumba aos 8 anos), corre trinta e cinco voltas no quarteirão, e no fim do dia dá uma andadinha de quinze quilômetros com o marido; velhinha viúva, sozinha, com um filho que mora longe e nunca a visita, e atriz de teatro que, “por causa da idade, prefere representar avós, donas de bar, viúvas, professoras aposentadas, rainhas mães de reis, governantas, madres superioras e tias que vieram de longe e nunca se casaram” (pág. 26). Perspectivas sobre alguém, descoladas de qualquer decisão ou precisão em sua biografia. Esse livro é extraordinário também por isso, por mostrar de forma lúdica que muitas vezes antes dos fatos, há o foco. Para a História, essa ressalva é sumamente importante. Além da questão da evidente diferença etária em relação aos amigos que trocam possibilidades sobre a velhinha, a obra lida com expectativas sobre envelhecimento e o tempo biológico.

Essas últimas obras também dão espaço para a discussão do tema da morte, um tema que está presente na Literatura Infanto-Juvenil contemporânea, na escrita de autores que reconhecem a importância da mobilização dos afetos na sua diferença e intensidade. Em Contos de enganar a morte, a indesejada aparece personificada, reclamando uma tradição artística medieval de convivência e debate. Quando os personagens tentam negociar com a morte, sua diligência acorda em mim a memória do velho romance da morte e do namorado, de tradição ibérica, lindamente cantado por Adolfo Osta em nosso contexto. Já em A Casa do meu avô, há uma avó morta que é presença fantasmagória em um piano que toca sozinho! Aliás, nesse lindo livro, em versos livres, a decrepitude não está ligada à velhice. Não é o avô que degenera, mas o tio do protagonista. Ricardo Azevedo não teme os temas complexos, como a morte e a loucura. Lida com eles de forma lúdica, no caso dos Contos de enganar a morte, e poética, no caso da Casa do meu avô.

Nisso o autor não está isolado na Literatura Brasileira, basta lembrar, em uma vertente, das Sete Histórias para sacudir o esqueleto de Angela Lago (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002) e, na outra, de Meu amigo pintor de Lygia Bojunga (20ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003). No caso de Angela Lago, ressalto que, assim como Ricardo, a autora também é responsável pelas ilustrações e projeto gráfico da obra. A forma poética e acessível às crianças, no que há de mais simples, do que não se confunde com o barato, mas se identifica com o único, integral, no trato literário com o tema da morte, também se acha presente na literatura portuguesa, em um de meus preferidos As mais belas coisas do mundo, de Valter Hugo Mãe. Nessa obra, não se escamoteia o sofrimento que a morte pode causar, o sentimento é trazido à cena como experiência necessária.

No meu livro Menina com brinco de folha, acompanhamos as transformações de duas crianças ao longo do seu primeiro ano escolar. Mas no meio da narrativa, o avô do protagonista morre. Esse acontecimento motiva decisões importantes por parte do menino, que dá de presente/oferenda ao avô morto a sua coleção de folhas e, por parte da família, a decisão dos pais de que a avó, mãe da mãe do protagonista, passasse a morar com o núcleo principal. Pelo viés do protagonista, o menino, vemos obras na casa para abrigar a avó e o vemos tornar-se um leitor para uma avó que adormece, quando ele lhe conta uma história pela primeira vez. Vemos também essa avó a precisar de remédios... A narrativa promove, assim, encontro, pois a vida é também convivência entre temporalidades diferentes.

Antes de minha proposta de síntese dos tempos nessas obras, queria destacar a importância de elementos para-textuais nas narrativas que trouxe aqui de Ricardo Azevedo, como entrevistas, conversas com o leitor, explicações..., que completam a leitura das obras. Não quero dizer com isso que o estudo desses segmentos é essencial para a compreensão do que foi escrito antes, do texto literário propriamente dito, mas esses elementos são uma espécie de making off, como o texto final de Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas, em que o autor refere a sua inspiração e a reformulação pela qual a obra passou.

CONCLUSÕES PARCIAIS

Singularizar o exame do tempo nas narrativas consagradas às crianças, tanto como lugar de memória, de pesquisa, folclore, tradição medieval ibérica, indígena e africana, quanto como elemento da diegese e que afeta a diegese, quer sejam seus personagens quer sejam os acontecimentos, renova a reflexão sobre o tema em um contexto em que o tempo parece que passa depressa, ou mesmo escapa pelos nossos dedos. O “era uma vez” é só um dos gatilhos para o encontro com o tempo das tradições culturais recontadas a cada geração. Na narrativa de Ricardo Azevedo, esse gatilho pode ser apenas: “Era um fazendeiro muito rico”; “Era um jovem rico e viajante”; “Era um reino longe daqui”, muito embora o “era uma vez” também se escreva (exemplos da obra No meio da noite escura tem um pé de maravilha).

As narrativas voltadas às crianças também expressam expectativas sociais em relação às transformações biológicas que a passagem do tempo evidencia em nosso corpo. Nos textos, a convivência faz aflorar o amor, o cuidado, as divergências, o equívoco..., presentes na sociedade que vive mais, adoece mais, tem dificuldade com o cuidar, o compreender e que depende também da colaboração dos mais velhos, quer seja financeira, quer seja do tempo e cuidado com os netos, ambas situações muito frequentes no Brasil. Uma sociedade que empurrou a morte para os hospitais, local em que se morre sozinho, perfurado e monitorado pelos aparelhos. Os textos tecem os fios de uma experiência complexa: de vida e linguagem, para a recriação de outra experiência – a literária, que se completa na leitura, como retorno à vida, à criança e ao adulto.

O tempo imóvel dos contos de fadas, radicado, por exemplo, na tradição cultural ibérica da “Moura Torta” (recontada por Ana Maria Machado, nas suas Histórias à brasileira), é ressignificado no processo de ampliação do repertório da criança, quando ela reconhece fazer parte de uma História muito maior que ela. Ao fazer contato com esses textos que evocam tempos e tradições que nos constituem, as crianças experimentam a fruição, mas ao longo da sua vida, elas deveriam vivenciar – e nós professores precisamos lutar para garantir que a experiência se complete para a formação de cidadãos conscientes da sua História – um prazer que é o de reconhecer[6]. A História é agente desse reconhecimento e colabora com a Literatura para isso. A Literatura não precisa da História para a fruição, mas pode se beneficiar da sua colaboração que reinsere a criança em uma “linhagem”, de homens e mulheres conhecidos e desconhecidos por ela, que a antecederam e que tomaram decisões que repercutem no seu presente.

Quando Ricardo Azevedo abre o bazar do folclore para as crianças, põe diante de seus olhos um outro tempo, “expõe um mundo de que o leitor se apropria. Esse mundo é um mundo cultural”[7]. A colaboração entre a História e a Literatura promove, assim, a consciência de algo que irmana, ao invés de dividir, o reconhecimento da multiplicidade de quem somos afinal. Ora, se Aristóteles afirmou que a poesia é mais filosófica e universal, enquanto a Historia ficaria reduzida ao particular, é da comunicação entre as duas, na cultura compartilhada, que os indivíduos podem se reconhecer como sujeitos, não como filhos que são devorados pelo tempo, mas como sujeitos que convidam o tempo a habitá-los, em seus corpos, na sua mente, para nosso prazer e experiência de vida.




[1] Após esse breve “pensando alto...”, compartilho um texto que escrevi ano passado sobre o tempo na literatura infanto-juvenil.
[2] RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de História. Organizadores: Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca, Estevão de Rezende Martins. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. p. 79.
[3] Idem, p. 112.
[4] Já escrevi que acho danoso apresentar temporalidades longas para crianças pequenas. Confira em: http://literistorias.blogspot.com/2016/07/sobre-mesa-redonda-no-mec-em-13-de.html
[5] Em três tempos: o da estrutura, o da conjuntura e do acontecimento.
[6] Tomo a relação de Paul Ricoeur, na sua discussão da Poética de Aristóteles: “O prazer de aprender é portanto o de reconhecer. É o que o espectador faz quando reconhece em Édipo o universal que a intriga gera exclusivamente por sua composição. O prazer do reconhecimento é portanto, ao mesmo tempo, constituído na obra e experimentado pelo espectador” (RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. 1 A Intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 88).
[7] Idem, p. 91.


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