Prólogo:
Não sei se António Rei se sentiu particularmente inspirado pela vitória da seleção nacional contra a França na final da EUROCOPA – 2016, o certo é que esta semana o blog LITERISTÓRIAS tem a alegria de publicar mais uma crônica literária sua, desta vez sobre futebol, sobre férias em Odeceixe e sobre um outro 7 X 1...
Não sei se António Rei se sentiu particularmente inspirado pela vitória da seleção nacional contra a França na final da EUROCOPA – 2016, o certo é que esta semana o blog LITERISTÓRIAS tem a alegria de publicar mais uma crônica literária sua, desta vez sobre futebol, sobre férias em Odeceixe e sobre um outro 7 X 1...
O Guarda-redes
Andava eu deambulando pelos Algarves, em pleno verão de 79, e
já algo saturado da agitação estival das cidades do extremo sul, em especial
Portimão e Lagos (os meus poisos prediletos, confesso) resolvi começar a subir
a chamada “Costa Vicentina”, na companhia de um outro compincha, o Miguel.
Acabámos por parar em Odeceixe, onde o Miguel já estivera
noutro momento, mas que para mim foi uma estreia.
Fomos acampar, como muitos outros, para a praia de Odeceixe,
que ficando a norte da foz da ribeira do mesmo nome, ainda fica no Alentejo,
enquanto a povoação está na outra margem, no extremo noroeste do Algarve. A
maré vasa permitia ir-se ao povoado, sem se ter que fazer uma volta de alguns
quilómetros por caminhos poeirentos e por estrada. A fauna campista era da mais
“desvairada” gente, portugueses e estrangeiros, mais assim e mais assado, que
coexistiam, compartilhavam um pouco de tudo.
Há noite, a fogueira da praia era um dos pontos de encontro e
reunião de toda esta gente, que, como alternativa tinham uma barraca de madeira
coberta de caniços, pomposamente “o restaurante” da praia.
Ali havia um rádio, sempre ligado, numa estação, indefinida,
não se percebendo muito bem se eram notícias, música, publicidade ou relatos
desportivos. Mas ninguém a tentava afinar, nem ninguém se preocupava com isso.
O suprassumo era uma televisão, que era ligada à noite, e onde a imagem, quando
estava fixa e não corria vertiginosamente na vertical, quase não tinha
contraste, era tudo cinzento, mais ou menos, pois ainda a televisão era a preto
e branco. Mas sempre era uma marca de cosmopolitismo.
Lá se podia comer alguma coisa, mas onde a ementa era sempre
apresentada num pedaço de toalha de papel, que seria reciclado de alguma toalha
do dia anterior.
E onde o mais barato, era pedir uma sopa, pão e azeitonas ou
queijo. E mesmo pedir um queijinho de ovelha não era coisa para todos os dias.
Era carote. O orçamento das idas veraneias ao sul tinha que ser esticado, muito
esticado !
A comunidade de campistas da praia era um motivo de interesse
sociológico, atração erótica e inveja, muitas vezes disfarçada de desdém, por
parte dos odeceixenses (se é que se chamam assim). A malta da praia “é que a
levava direita”, pensavam eles, mas não diziam.
Os rapazes mais ou menos guedelhudos e as raparigas mais ou
menos descobertas, todos com mais ou menos missangas, e transportando um mais
intenso ou longínquo aroma a “patchouli”, causavam ou ressuscitavam todas
aquelas interrogações aos moradores, quando aqueles iam ao povoado fazer
compras de artigos de primeira necessidade, nas pequenas vendas, meio
mercearias, meio tascas.
Na mercearia, onde dominava o elemento feminino autóctone, os
cenhos franziam-se de desdém ante as “raparigas da praia”, e as odeceixenses
mais novas, mas não só, amiudavam de soslaio os “rapazes da praia”.
Na tasca, que era geralmente contígua apenas separada da
mercearia, por uma porta, sempre aberta, acontecia o mesmo, mas no inverso.
Os que “não valiam nada” segundo eles, eram os “rapazes”, mas
as “raparigas”, calma … eram motivo de olhares, de graçolas e de simpatias
melosas por parte dos homens da terra. Aquela tensão social latente, que era
causada pelos veraneantes, levou a que alguns de Odeceixe tivessem proposto aos
campistas da praia um jogo de futebol, entre uma equipa de naturais contra
outra “arrebanhada” entre os “rapazes da praia”.
Os elementos campistas que receberam o desafio, disseram logo
que sim, sem mais aquelas.
Assim, sublimou-se, ritualizou-se, pelo evento desportivo, o
confronto de valores e vivências, de ambos os grupos.
E o jogo seria logo no dia seguinte, fim-de-semana, porque os
de Odeceixe podiam contar com a “arma secreta” para aquele recontro. Um rapaz
da terra, com jeito para os pontapés na bola, e que “até jogava num clube da
III divisão”. Só este facto já lhes garantia que aquele eleito, a quem os
deuses tinham posto asas nos pés, qual Hermes ou Mercúrio, iria dar a vitória,
aos da terra, e repor a “ordem do mundo”, seriamente ameaçada por aqueles
“outros”, tão diferentes, tão interessantes, tão apelativos, tão filhos do demo
…! que iriam ser arrasados naquele jogo.
Nessa noite, os recetores do desafio e organizadores da
equipa da praia andavam fazendo convites para reunir o número de sete jogadores
para o tal embate, quase civilizacional. Estavam tão ocupados e preocupados que
nessa noite nem apareceram na fogueira da praia.
No dia seguinte, à hora do almoço no “restaurante da praia”,
os mesmos organizadores, já à beira do desespero, acercaram-se de mim e
perguntaram-me se eu quereria jogar como guarda-redes, pois aquele que primeiro
dissera que sim teve um contratempo que lhe impediria estar presente no
“derby”.
Entre duas colheradas de sopa, e eventualmente ainda de colher
no ar, apanhado de surpresa pela proposta, num primeiro momento, declinei o
convite. Mas o ar desesperado dos ditos tocou as raias do pânico, e um deles
pediu-me, de joelhos que fosse, porque já não podiam pedir a mais ninguém. Ou
seja, eu era o eleito por exclusão de partes. Acabei por lhes dizer que sim, e
lá me deixaram acabar a sopa, o pão e as azeitonas.
Pouco depois juntou-se um grupo, entre os jogadores, as
“estrelas da companhia”, e a companhia propriamente dita que ia apoiar e em
dois ou três carros, toda a malta mais ou menos amontoada, e em que o veículo
mais espaçoso era uma van VW pão-de-forma.
O grupo campista ia todo mais ou menos entusiasmado com o
jogo. No fundo sentiam, também eles, que aquela diferença de formas de vida
deveria conduzir a um desfecho que levasse a algum género de confronto físico.
E que o jogo de futebol é a forma ritualizada da batalha. Eu, confesso, estava
um pouco alheado daquela euforia. Mas a achar piada pela coisa em si.
O grupo, que na praia parecia grande, quando se chegou ao
recinto, foi aniquilado pela quantidade de naturais que estavam lá para ser
testemunhas daquela “morte anunciada”.
Foi então que os “campistas” perceberam que de alguma forma,
eles seriam a mosca convidada para almoço pela aranha. E mais evidente se
tornou, quando o “crack” da III divisão apareceu e foi quase levado em ombros,
pela população local. Pela forma desdenhosa como olhava os “da praia”, enquanto
dava uns toques cheios de estilo, atiçava o desejo dos seus conterrâneos pela
retumbância da vitória. Queriam sangue !
A imparcialidade do critério de justiça relativamente ao
jogo, foi alegremente posta para trás quando o que fez de árbitro também foi
escolhido entre um dos filhos da terra.
Os campistas estavam a perceber perfeitamente que se tornava
impossível dar um passo atrás e dizer que já não queriam jogar. Tornar-se-iam
no alvo da chacota contrária, que se eternizaria, pelo menos até quando
acabassem por se ir embora.
Tinham que morrer de pé! Com dignidade! Para ao menos
merecerem o mínimo do respeito por parte do antecipado e programado vencedor.
Equipas no recinto, daqueles de cimento, para andebol,
futebol de salão (ali ao ar livre), e ainda com marcas, nunca usadas, para
basquetebol e para hóquei.
Os cumprimentos da praxe, com o crack da III divisão a
capitão do Odeceixe. O árbitro apita e a populaça grita com os olhos injectados
de uma enorme confusão de sentimentos, potenciados pelo vinho de almoço de
sábado. Todos a quererem ver brilhar o “menino de ouro” da III divisão.
Os campistas, alguns que pareciam estar a tocar numa bola
quase pela primeira vez, ao menos num jogo “a sério” (que aquele era sério
mesmo), estavam a aguentar a fúria dos outros, e os dribles do crack. A nossa
defesa estava a aguentar tudo aquilo, embora o sentido do jogo fosse de lá para
cá. A nossa defesa não me estava a deixar brilhar. O meu momento, ou momentos ainda
estavam para chegar ! ...
Como não estavam a conseguir a avalanche de golos que
pretendiam, o público começava a ficar inquieto e a resmungar e a mandar
“bocas”, algumas claramente à procura do efeito que acabou por surgir daí a
poucos minutos.
O árbitro, a sentir a pressão, acaba por marcar contra os
campistas um penalty, por falta que não fora feita na área, nem lá perto. A
populaça aplaude, achando que finalmente seria reposta a justiça do resultado,
ainda que à base de “esquema”.
Os campistas a protestar que não era penlaty, e os outros a
dizer o contrário, a impor o contrário pela força do número e da gritaria
ameaçadora.
O jogo não me interessara em especial; tinha ido para variar
naquele dia, e também ainda não tinha tido nenhum papel de importância no jogo.
Também era verdade que o crack da III divisão não se notara por cima dos outros
companheiros.
Voltemos à cobrança do penalty. Foi aí que eu fiquei, pela
primeira vez, frente a frente com aquele astro futebolístico, que tinha toda a
malta de Odeceixe a gritar por ele. Os meus companheiros a pedir-me o melhor !
o milagre ante aquele expert do futebol nacional, e quiçá internacional, senão
em termos absolutos, ao menos relativos.
Mas foi aí que eu entrei no jogo. Só que à minha maneira. Não
suporto injustiças, e ali estávamos a ser claramente vítimas de uma.
Coloquei-me mesmo no meio da baliza, em pé, e de braços cruzados, e disse para
o crack: “Essa bola não vai entrar !”
Os meus companheiro pedindo-me uma atitude mais ortodoxa,
mais normal em campo, mas eu não cedi, não mudei de posição, nem descerrei os
braços. E perante todo aquele impasse nem o árbitro apitava para o remate. Ao
ficar claro que eu não iria mudar, os campistas conformam-se com a sua sorte. O
árbitro apita, o crack avança, remata, e a bola sai ao lado da baliza. Eu nem
me mexi.
Os campistas aos saltos de alegria, entre a gritaria dos
odeceixenses, uns festejando já o golo que não chegou a existir e outros que
berravam mais alto a pedir a repetição do penálti. Razão: porque o guarda-redes
não se mexeu, e devia ter mexido.
O que eles não suportavam era que o menino de ouro, o orgulho
futebolístico da terra desse tamanha fífia. Depois de muita discussão com o
jogo interrompido, acabaram por avançar para a repetição do penalty, a
contragosto dos campistas, como é natural. Mas o peso da casa era muito grande
…
E era chegado o meu momento de glória futebolístico. Quando o
crack avança novamente com a bola para a marcação, eu fui falar com ele e com o
árbitro e disse: “Eu vou ficar do lado de fora da baliza. A baliza vai ficar
toda aberta. Mas a bola não vai entrar”.
Novamente os meus companheiros a convencer-me para eu ser um
guarda-redes igual aos outros, mas eu não cedi.
Depois de mais outro impasse, eu fiquei encostado à baliza,
pelo lado de fora, e após o árbitro apitar o crack mandou a bola por cima, para
as nuvens.
A população de Odeceixe gritou: “Tirem esse gajo daí !
Tirem-no da baliza !”, o que acabou por acontecer, tendo eu saído perante a
estupefação de companheiros e adversários.
Acabara de ganhar fama e respeito ! Fama entre os “rapazes da
praia” e respeito ante os odeceixences ! O que não se percebe é melhor não
desafiar. Ou seja fora imbatível, mesmo em penalty, por duas vezes, pelo crack
da III divisão !
Saí e fiquei entre o público a conversar com outra malta e a
regar a minha fama a despontar. Não mais liguei ao jogo ali ao lado. O meu jogo
já acabara, e eu ganhara-o. Fiquei conhecido, a partir de então, na praia de Odeceixe,
por o “Guarda-Redes”.
Ah, o jogo ? Repetiram o penalty (pela terceira vez) com outro
guarda-redes, e a bola entrou e o crack da III divisão brilhou. Os campistas
acabaram por perder 7 – 1. Ainda marcaram golo de honra. A mim é que não me
marcaram nenhum.
Apesar da derrota os campistas defenderam a sua honra,
marcaram o golo de honra e tinham na equipa não uma estrela, esses são os
cracks das N divisões, mas um cometa, que tem também luz, é mais fugaz e mais
fatídico.
Era uma vez um jogo de futebol de verão em Odeceixe …
António Rei.
Epílogo:
Pensei em ilustrar o texto do meu amigo com lindas paisagens de Odeceixe, sítio que eu afinal não conheço, mas que fiquei com muita vontade de conhecer por causa do texto e da pesquisa que fiz na internet. Entretanto, uma pequena frase sua me lembrou de um quadro de Arpad Szenes (o pintor húngaro foi casado com a pintora portuguesa Maria Vieira da Silva), chamado Les guerriers (1938-1939)... Não resisti!
Pensei em ilustrar o texto do meu amigo com lindas paisagens de Odeceixe, sítio que eu afinal não conheço, mas que fiquei com muita vontade de conhecer por causa do texto e da pesquisa que fiz na internet. Entretanto, uma pequena frase sua me lembrou de um quadro de Arpad Szenes (o pintor húngaro foi casado com a pintora portuguesa Maria Vieira da Silva), chamado Les guerriers (1938-1939)... Não resisti!
Para conhecer mais a
obra tanto de Arpad Szenes quanto a de
Vieira da Silva, recomendo a visita à página da Fundação Aspad Szenes-Vieira da Silva
Visite a entrevista que António Rei concedeu a mim, sobre o estudo do
Al-Andaluz, e a sua outra crônica literária, sobre o 25 de abril, aqui em
LITERISTÓRIAS!
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