domingo, 26 de dezembro de 2021

A rabanada vegana

 

Para Deise, Raquel e Roberta.

Para a minha mãe.

 

Nesse dezembro, eu já fiz rabanadas três vezes: duas vezes na minha casa (em um pré-Natal e no dia 24 mesmo) e em uma casa amiga (em outro pré-Natal). No dia 24, eu fiz uma parte das rabanadas com eritritol[1]. O Natal para mim começa com rabanadas. Quando criança, eu via a minha mãe fazê-las logo na manhã do dia 24. Eu via a minha mãe encher uma ou duas travessas bonitas – aquelas de casamento – com as fatias douradas e açucaradas. Quando eu me casei e me tornei senhora dos meus próprios Natais e travessas, descobri por que minha mãe fazia questão de prepará-las cedo: as rabanadas sujam louça, fogão e chão de cozinha. Então, é melhor fazer logo, para as louças não se misturarem. A gente lava tudo depois de prepará-las e pode recomeçar os trabalhos do Natal na cozinha limpa. O Natal para mim começa com o cheiro do açúcar e da canela, que envolve esse pão largo sem muita casca, mergulhado em leite, abraçado em ovo e que não tem medo de óleo quente.

Nos pré-Natais desse ano, eu servi minhas rabanadas para pessoas que nunca tinham preparado ou comido esse doce em casa. Segundo apurei, as rabanadas foram aprovadas. Eu fotografo minhas rabanadas, mando para amigos e amigas e, esse ano, uma pessoa queridíssima escreveu em uma foto minha: “as famosas rabanadas da Profa. Marcella”. Fiquei prosa.

Mas esse nunca me devolveu o pensamento sobre diferenças culturais que passam pela mesa e pela boca. Em um dos pré-Natais, eu comi peru assado. O conto do Mário de Andrade bem na minha frente! Estava divino. Foi a segunda vez na minha vida, porque a tradição da minha casa de menina e moça sempre foi o bacalhau; na minha casa de mulher adulta, o bacalhau continuou a reinar absoluto em várias receitas.

Eu encomendo pão de rabanada em uma padaria específica. No pré-Natal vivido na casa amiga, eu improvisei rabanadas com o pão mais parecido (com o de minhas encomendas) que encontrei. Mas já comi rabanada em Portugal feita com pão de forma. Achei bom, mas gostei mais das minhas.

Existem pequenas variações no preparo das rabanadas, isso significa que elas são um bom exemplo de tradições moventes. Algum defensor empedernido e equivocado das “tradições” pode franzir a boca amarga para a colher de leite condensado misturada no leite, para o pão, para o eritritol..., mas é preciso lembrar que não raro quem se arvora em guardião defende um momento específico a que teve acesso de uma tradição. Se conseguir andar um pouco mais para trás na pesquisa pode cair do cavalo segurando a bandeira do imobilismo. Tradições se mantêm porque se adaptam, porque se transformam. Minha experiência tem me mostrado que quem se veste de defensor de tradições, não conhece a dinâmica própria dessa reunião aerada de modos de viver, saberes e técnicas.

Uma amiga minha carioca, ao saber que eu já ia para o preparo da terceira pratada de rabanadas me disse que tinha descoberto uma receita vegana! Minha primeira reação foi bancar o emogi dos olhos arregalados. Depois, encontrada de chofre com a poeira de jumentice dos defensores do imobilismo que sobrou em mim, pensei: deve ser uma coisa tão diferente que só mesmo a importância do batismo para uma busca tão afetiva! As rabanadas reúnem histórias e, quer a gente varie o pão ou o açúcar, elas têm identidade pelo conjunto material e imaterial.

No dia 8 de julho, eu publiquei um texto aqui no blog que intitulei “O gosto das coisas em uma 5ª feira”. Nesse texto eu mencionei os mantecados da D. Francisca, esposa do meu amigo, o saudoso Prof. Jayme Bueno. Pois no dia 24 à tarde minha querida Raquel Bueno, filha do Prof. Jayme, veio aqui em casa para me dar uma caixa de mantecados. Quando me deu, disse acanhada que esperava que estivessem bons, mas duvidava. Senti aquele aperto tão conhecido no peito: a saudade da filha que teve de se despedir de um pai recentemente e de uma mãe mestra dos mantecados... Entrei com a pequena caixa e coloquei ao lado das rabanadas. Fiz café e sentei. Abri a caixa. Cada mantecado estava envolvido no papel vegetal recortado com esmero. Abri aquela delicadeza e lembrei. Lembrei do casal e das visitas na casa que nem é mais minha! Lembrei. Estavam perfeitos, Raquel.

Em 2020, na França eu me apropriei de algumas tradições. Este ano encomendei uma para sentar à mesa com as rabanadas: a Bûche de Noël. Alguém pode perguntar por quê? Eu tenho a resposta na ponta da língua: memória. Na verdade, para mim, é "só" disso que se trata. Ficar quatro horas em pé fazendo uma carne assada que ficaria pronta em meia hora – se eu cometesse a heresia de colocar a panela de pressão na história – é lembrar do meu pai ali, com o pé apoiado na altura do joelho da outra perna, que nem um quatro de 1,80 m, dizendo que aquela carne não era para preguiçosos...

Eu adoro rabanadas e posso fazê-las a hora em que eu quiser, mas não faço. Eu faço duas vezes no ano e no mesmo mês. Eu como e espero. Espero em respeito reverente ao calendário. Ninguém cobra essa reverência, esse respeito... Quando faço, ela acende em mim a memória de anos, de gerações até.

Também respeito a rabanada vegana da minha amiga. Suas escolhas e sua saúde exigem coerência, mas a memória... mesmo que eu ache o gosto diferente, esse batismo me emociona porque imagino que, na casa carioca dela, o dia 24 também começava com açúcar e canela, travessa e panos... e essa memória é tão forte que batizou o clone vegano. O peru de Natal, os mantecados, a Bûche... tradições que se sentam juntas para alimentar o corpo, os afetos e fomentar mais curiosidades. Gosto.

Daqui a pouquinho, eu vou preparar um doce que coloca um sorriso na boca de quem escuta o nome pela primeira vez: aletria. Fazer aletria é esvaziar a caixa de ovos[2] em pura evocação da minha infância. Não deu tempo de fazer para o Natal, mas quando eu cheguei a Cutitiba, alguém me contou que se continua a comemorar o Natal no dia 26! Boa tradição essa que me dá mais tempo...  

Ainda tenho uma pratada de rabanadas para fazer nessa casa antes que o ano acabe. Manhã de açúcar, canela, saudade que antevê a espera por um novo dezembro.

Os mantecados da Raquel, da Dona Francisca e de todas as andaluzas da linhagem da Raquel! Ao fundo, dá para ver o prato de rabanadas com eritritol.

As rabanadas com a convidada francesa Bûche de Noël

Elas...








[1] Um adoçante natural, com o gosto muito próximo ao açúcar refinado.

[2] A minha receita leva 8 gemas...

4 comentários:

  1. Que bom que apreciou nossos mantecados de tradição andaluza! Fiquei com vontade de rabanada, claro! Ainda mais se for rabanada de 24/12, dia do meu aniversário. :-) Que venha um doce 2022!

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    1. Muito obrigada! Que a gente troque rabanadas por mantecados!

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  2. Que texto lindo! Elaborações delicadas para louvar tradições e memórias.Que sua espera pelas rabanadas de dezembro de 2022 seja repleta de vida e de momentos memoráveis.

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