segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Um professor de História e Geografia foi degolado na última 6ª feira na França, essa tragédia merece muito mais que 1 minuto de silêncio

O Professor de História e Geografia, Samuel Paty, 47 anos, foi alvo de integristas muçulmanos por ter levado caricaturas à sala de aula, para um debate sobre a liberdade de expressão. O Professor Samuel Paty foi assassinado. As caricaturas em específico foram as caricaturas publicadas no jornal Charlie Hebdo e que já inflamaram outros assassinos. O Professor Paty foi ameaçado em redes sociais, foi ameaçado por famílias na escola em que trabalhava e foi vítima de um crime pensado por manipuladores, criminosos conhecidos na França, e realizado finalmente por um adolescente descartável por esses manipuladores e vazio de qualquer força moral interior. Alguém pode dizer condescendente: mais uma vítima dos manipuladores, Marcella... Eu vou responder: reconheço o velho debate entre os que depositam todas as fichas nos fatores contextuais/coletivos e aqueles que colocam todas as fichas na vontade (interior) do humano. Há muito tempo acho que esse é um dilema que esvazia o debate nas ciências humanas. Minha posição de forma muito sintética: a mão pode ser armada por uma arma comprada/ofertada por outro, as idéias que animam a empunhá-la podem ser uma mistura confusa de equívocos e necessidades que abrasam na hora do embate, mas quem atira, e no caso de Paty quem cortou a carne, foi a mão individual que, três segundos antes de realizar o crime, teve alternativa e mobilizou a sua vontade para o crime. Desculpem, creio demais na juventude para acreditá-la, por sua vez, formada por bonecos infláveis de posto. Não vou prosseguir nesse debate, pois tenho outras coisas a considerar.

As lideranças muçulmanas que pregam a paz e a fé na palavra que segundo a sua crença foi revelada por Deus ao Profeta Maomé vieram a público apontar os manipuladores contra quem essas lideranças já prestaram inúmeras queixas. Fizeram declarações fortes na imprensa. Estão na rua hoje inclusive, correndo o país e dizendo que o Islã não pode ser confundido com a malignidade dos manipuladores em falsas associações e nas redes sociais. Um deles afirmou: professores, vocês são profetas; perdão; Paty é um mártir. É fundamental que as lideranças de fato religiosas e os fieis se posicionem publicamente contra os integristas falsamente identificados com sua fé. É fundamental que se levantem (como Chalghoumi hoje). Sempre levantarei a minha voz simples, eu que estou longe de ser uma liderança, contra os católicos criminosos que cometeram crime contra a criança vítima de violência e que teve a interrupção da gestação autorizada pela lei do Estado brasileiro. Quero docemente que eles e elas encontrem assento no inferno que sonham para os outros. Espero sempre que evangélicos de fato crentes posicionem-se publicamente contra os integristas que tentam mudar a vocação do Estado brasileiro, um Estado laico.

O assassinato do Professor Samuel Paty é um crime que me atinge, que me toca e que me faz sofrer por tudo o que convergiu para a sua execução: as situações específicas da História do seu país; as situações que extrapolam a França e que constrangem os professores pelo mundo; o papel das famílias em vários Estados na sua relação com a escola; a relação do Estado laico com as igrejas e a convivência entre as identidades de reunião[1] em uma república democrática.

Por todo o lado, o magistério é uma profissão de risco. Sim, nos países ricos, a violência contra os professores não é caso isolado. Entre nós... foi até mesmo assumido como decisão institucional. Já são 5 anos do massacre do Centro Cívico, ordenado pelas forças políticas eleitas para servir ao Estado. É arriscado elevar-se contra os constrangimentos familiares, de identidades que acreditam que só elas têm o direito de existir; é arriscado oferecer às crianças e aos jovens os livros e a literatura a quem têm direito para a formação de seu repertório; é arriscado contrapor o negacionismo; é arriscado cobrar do Estado; é arriscado dizer às crianças e aos jovens – e fortalecer sua vida interior – que eles e elas têm escolha e que podem pensar por si mesmos; é arriscado formá-los e educá-los contra suas fantasias perigosas e seus próprios desejos imediatos... O Professor Samuel Paty levou fontes históricas à sala de aula para um debate sobre a liberdade de expressão, seu sacrifício revela tragicamente a escala em que um tema desse precisa ser enfrentado pelo mundo afora.

No fim de semana, cidadãos franceses “esqueceram” a Covid-19 e foram às ruas render homenagem ao Professor Paty. As autoridades políticas expressaram o seu horror contra a violência que o atingiu e estão agindo. Uma homenagem nacional lhe será prestada. Não posso falar da eficácia... A morte de um professor brasileiro mobilizaria o presidente do país da sala para o quarto ou para o banheiro. Semana passada foi dia dos professores. O governo eleito por quase 58 milhões de brasileiros despreza os professores. As evidências são inúmeras, inclusive na pasta da Educação. A violência contra nós e o sacrifício de nossa vida são linhas em jornais que as autoridades desprezam, bem como seus eleitores...   

Eu não escrevi #jesuischarlie no passado recente, mas sinto a morte de Paty como já senti a morte de colegas que eu perdi na minha carreira, como chorei... Os colegas que perdi, eu perdi para doenças e para acidentes, eu perdi o Professor Samuel Paty para o integrismo, para a ignorância, para o mal absoluto que manipulou certamente um jovem perigoso e ignorante. Uma família perdeu um pai, um marido. Mas a família do assassino exulta, afinal foi bem sucedida em criar um assassino, a despeito do esforço dos seus professores de transformá-lo em um cidadão... Uma das coisas mais tristes que já escrevi em minha vida.

Semana passada foi dia dos professores no Brasil. Para mim, Paty é um mártir brasileiro também. Não vou escrever #jesuispaty porque gostaria que sua identidade com homem, professor e pai fosse preservada para nos constituir inteira. Eu sou Marcella e a memória de Paty que eu não conheci é parte de mim.

Foto de Betrand GUAY/AFP




[1] Há muito tempo tenho falado dessa ideia que fui buscar na obra de Amin Maalouf.

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