Em 1984, o cineasta Philip Gröning pediu autorização para filmar na
Grande Cartuxa de Grenoble (França), disseram para ele que era cedo, talvez
dentro de 10 ou 13 anos. 16 anos depois, ele obteve autorização e realizou o
documentário O Grande Silêncio
(2005). Esse filme imenso (162 minutos), lento e silencioso... ganhou o prêmio
de melhor documentário europeu no ano seguinte a seu lançamento. Eu devo ao
amigo, Prof. Saul António Gomes, o meu encontro com o documentário. Desde
então, tenho recomendado, visto e conversado com meus alunos e amigos a respeito,
sempre com grande entusiasmo meu e de quem convenço e venço a resistência por
um filme tão “diferente”.
Esse filme mostra uma versão da “vida no deserto”.
Escrevo isso ainda impactada pelo desaparecimento do Prof. José María Blázquez
Martínez, no último dia 27 de março, referência em cristianismo primitivo. Seu
texto “Orígenes del monacato Cristiano” sempre me acompanha nas aulas. Por que
afirmei ser o documentário uma versão da vida no deserto, em plena França?
Porque o monacato foi na sua origem uma escolha de afastamento e, no contexto
específico de seu nascimento, no Egito, isso significou literalmente ir para o
deserto, ou seja, partir para uma forma de viver apartada da agitação econômica
e política dos centros urbanos, como Alexandria. Ora, a Cartuxa já é uma casa
medieval e ela buscou congregar duas formas de viver que, na Antiguidade Tardia,
foram um desafio a mais para a Igreja na sua tentativa de definir a ortodoxia.
As formas a que me refiro são: a vida solitária, dos eremitas, e a forma
coletiva, dos cenobitas. A Cartuxa propôs a seus adeptos ser eremita em grupo
(!?!). Quem vê o filme entende perfeitamente como isso é possível.
Se a princípio o silêncio é opressor, sobretudo no
acúmulo de barulho que compreende a nossa vida, rápido e com paciência, a gente
vai descobrindo os sons que o microfone capta: o zumbido de uma mosca; o
barulho dos corpos em movimento, quando sobem e descem escadas, quando cortam
uma fruta, quando se ajoelham ou se levantam; o som dos instrumentos de
trabalho, da tesoura que corta os panos, de portas... Na verdade, nossa audição
é despertada. Há vozes, há promessas, cantos, conversas e até papo furado sobre
outras casas cartuxas, fofocas entre monges..., há quantos anos determinado
monge não lavava as mãos?
O dia, dividido em tarefas e orações, parece passar
devagar. Devagar parece estar o avião no céu, sobre a Cartuxa, mas ele está
muito rápido (!), a comprovar que não estamos na Idade Média. Há também uma
máquina elétrica de cortar cabelo! Definitivamente, não estamos no medievo... O
filme dá uma colher de chá para os medievalistas, porém: a contemplação de um
antifonário e a apreciação do cantochão! Gestos repetidos, temporalidades
superpostas. O tempo também é cíclico, surpreendemos as estações, e mesmo o
frio não interrompe o que precisa ser feito para a vida em comunidade.
Há uma coisa que me encanta no documentário: o
close nos monges. São rostos tão diferentes, idades e cores diversas! Algo em
comum? Eu poderia dizer que há paz em seu olhar, mas seria inventar, eu não sei
o que vai no interior do humano. No meu, o turbilhão sempre desafia! Por que
eles seriam diferentes de mim? Não abdicaram do sentimento, apenas partilham
uma forma de viver. Há um pouco de
pudor, um pouco de desafio, um pouco de dúvida a respeito da câmera invasora em
seu olhar... E a câmera me parece muito respeitosa!
Muitos gestos só se dão a conhecer por uma nesga de
porta. Passa alguém, mas depois esse alguém some e só fica a mesa, desde
quando?! A impressão que tenho é que não dá para mover a mesa, ela está ali
desde sempre, criou raiz. Mas sempre
é muito tempo e é também só a minha imaginação.
Quando o filme começa, o monge alfaiate prepara uma
nova roupa e, logo, descobrimos por que aquela necessidade precisava ser
satisfeita. A Cartuxa vai receber noviços. Entre o abade e os recém-chegados se
estabelece a entrega ritual: é de plena
vontade... Para os que se apressam no julgamento de uma vida apartada do
século e de seus “grandes prazeres” (!), opressora(?), acho importante “voltar
a fita”: - É de plena vontade? – É de
plena vontade... Eles se ajoelham, são abraçados e erguidos pelos seus novos
irmãos, tornaram-se iguais, uma versão da entrega vassálica desfila pela tela.
Um velho monge cego concede uma entrevista. Pare já
quem pensa ver uma versão bem real do Venerável Jorge de O Nome da Rosa (dirigido por Jean-Jacques Annaud)!!! Só podemos
imaginar as perguntas pelas respostas que ele dá. Não, não tem medo da morte; por que teria?; ninguém deve temer a morte,
ao contrário; o passado e o presente são humanos; Deus não tem passado; quando
Deus nos olha, olha toda a nossa vida... Ele fez bem à minha vida ao fazer-me cego; o mundo perdeu o sentido de
Deus; para que viver? Não perco meu tempo julgando os valores desse homem,
porque confesso que parei mesmo nesse Agostinho que reconheço em suas palavras
e nessa frase tão forte: quando Deus nos
olha, olha toda a nossa vida.
Há cenas
muito bonitas e delicadas nesse filme. Eu rio dos monges na neve. Eles brincam,
caem, rolam e perdem os sapatos. Eu não contenho as lágrimas diante dos closes
alternados do velho monge, que já tem o olhar parado, que respira mal, em cujo
corpo, cenas antes, um remédio fora passado – aliviaria a sua dor?, e de um dos
noviços, tão lindo!, de olhar decidido. Em minha imaginação, Agostinho tem
aquele rosto. Esses closes em especial me falam sobre a vida toda, sobre seus
limites; sobre estar sozinho em meio a todo mundo; sobre morrer nos braços de
quem se ama e ser erguido para uma vida nova por quem é nosso igual.
O grande
silêncio é um filme sobre uma forma de viver. Para quem encontra alento
na diversidade das escolhas da vida; para quem exalta a lembrança de
possibilidades que nunca imaginou para si mesmo; para quem não tem medo de
olhar nos olhos, nem de silêncio... esse filme é um convite.
Destaques:
Dá para ver o filme no youtube!!! https://www.youtube.com/watch?v=tY45g8trFMY (as legendas estão um pouco
adiantadas...)
Visite o site da Grande Cartuxa de Grenoble: http://www.musee-grande-chartreuse.fr/fr/espace-scolaires/monastere-et-grand-silence. Tem Cartuxa no Brasil também,
confira: http://www.chartreux.org/pt/casas/medianeira/index.php
Boa noite Prof Marcella!
ResponderExcluirEsse filme é muito gostoso de se assistir.
Quando a srª passou-o em sala, gostei muito e precisei assisti-lo
mais uma vez em casa, na intenção de poder captar mais detalhes do mesmo.
É bonito perceber no filme, como o silêncio é tão comunicativo
quanto os sons.
É um afastamento do que chamamos de "cotidiano" (que muitas vezes é corrido, barulhento e obtuso). É um afastamento do próprio tempo.
Enquanto o mundo lá fora gira intensamente, ali o tempo parece seguir seu próprio ritmo. Talvez não achem necessário segui-lo.
Os sons do ambiente, os sinos, as luzes que adentram as salas e quartos, e o silêncio das vozes que não falam, me parecem dar um tom de segredo - segredo da vida e de todas as coisas. É de arrepiar rsrs.
Realmente O Grande Silêncio é um filme que chamou muito a minha atenção.
Agradeço a ti, Prof Marcella, por tê-lo apresentado.
PS.:
Obtive uma melhor experiência ao assisti-lo ao usar fones de ouvido.
Abraços,
Fabiano Favretto
Fabiano, muito obrigada por compartilhar a sua própria experiência com o filme e a dica dos fones é ótima! Beijão!
ExcluirProfe, so tenho a agradecer por voce ter passado esse maravilhoso documentário em sala. Ele nos faz refletir sobre o tempo e sobre o nosso próprio eu dentro de um todo. Ele faz nos atentarmos aos detalhes, aos sons, a um adesivo na fruta... chega a ser mágica a experiência com essa minuciosa delicadeza.
ResponderExcluirÉ um filme muito bonito e tão bonito quanto é o sentimento que ele nos passa, um sentimento de paz.
Seu texto sobre o Le Grand Silence é simplesmente lindo. Simplesmente amei ambos, texto e filme!
Concordo com o colega, fones de ouvido ajudam a captar melhor os sons rsrs
Beijão, Fernanda Lages
Fernanda, que bom ler que o filme encontrou o seu coração! Beijo!
ExcluirMuito lindo como sempre. Adoro esse filme!
ResponderExcluirTambém... Beijos, querido!
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