segunda-feira, 25 de abril de 2016

“Ah, sim, a senhora lê Madame de Sévigné!” (parte 1)

“Esforçava-me por emigrar para pensamentos eternos” (Marcel Proust)

No segundo volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust: À sombra das raparigas em flor, o narrador-protagonista sai de casa. Ainda é uma saída tímida, viaja com a avó e uma empregada da família até Balbec (cidade ficcional). Viaja com o coração partido, mas disciplinado: “Em Paris, eu me tornara cada vez mais indiferente a Gilberte, graças ao Hábito. A mudança de hábito, isto é, a cessação momentânea do Hábito, terminou a obra do Hábito quando parti para Balbec” (p. 196). O coração partido, então, não tem a ver com Gilberte, mas com a própria mãe: “Pela vez primeira tive a sensação de que minha mãe podia viver sem mim, dedicada a outra coisa, com outra vida diferente” (p. 200). No primeiro volume, seu sofrimento ante a demora da mãe para o beijo noturno é de cortar o coração. Para consolar o neto, a avó afirma: “– Minha filha, estou a ver-te que nem Madame de Sévigné, com um mapa sempre diante dos olhos e sem deixar um instante de pensar em nós” (p. 201). Essa referência me despertou.
Eu não me lembrei imediatamente onde havia lido esse nome, mas com pouco esforço cheguei à fonte. Eu tinha conhecido Madame de Sévigné na excelente tese de Beatriz Polidori Zechlinski, que tive o prazer de examinar, em 2012. Beatriz não distinguiu a obra da autora, mas a referiu no âmbito das relações literárias da França do século XVII. Então, lá fui eu recuperar essas referências. A pesquisadora destacou a importância da obra epistolar de Madame de Sévigné para elucidar práticas de leitura da época, para aclarar as relações de amizade estabelecidas por ela e indicar a sua recepção e a de seus amigos de livros publicados no contexto. Esses elementos, certamente muito importantes para quem se dedica a estudar as preciosas e os salões literários, não me informavam, porém, acerca da presença de Madame de Sévigné no romance de Proust. Minha ignorância completa da obra epistolar da autora não me dava elementos para pensar também sobre intertextualidade:

“Esse termo designa ao mesmo tempo uma propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos” (CHARAUDEAU, Patrick, MAINGUENEAU Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008. p. 288).

Proust, entretanto, mais uma vez me valeu e, enquanto eu devorava as sua páginas, descobri que a avó do narrador era uma leitora voraz de Madame de Sévigné, esta se tornara sua companheira de viagens!: “Minha avó, porém, havia chegado a Madame de Sévigné por dentro, pelo amor que tinha aos seus e à Natureza, e ensinou-me a apreciar suas belezas, que são muito diversas das mencionadas” (p.205). O narrador refere, em seguida, a coincidência de um encontro com um parente de Madame de Sévigné, um pintor, e alude a uma sintonia entre o método da autora e esse seu parente: “Em Balbec, dei-me conta de que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma forma que o pintor, isto é relacionadas com a ordem de nossas percepções e não explicando-as primeiro pela sua causa” (p. 205). Nesse momento, achei que era hora de ir atrás de uma carta de Madame de Sévigné e de conhecê-la melhor.
Fui à obra Les Grands auteurs français de Lagarde e Michard:

“Nascida em Paris em 1626, Marie de Rabutin-Chantal, neta de Santa Joana de Chantal, ficou órfã aos 7 anos. Seu tio, Christophe de Coulanges, deu-lhe os mais eminentes mestres, que lhe ensinaram o italiano, o espanhol e o latim.
Em 1644, ela foi desposada pelo marquês de Sévigné, que, entretanto, foi morto em um duelo em 1651. Viúva aos 25 anos, com dois filhos, ela se retirou para o castelo de Rochers, próximos a Vitré. Depois, voltou a Paris onde passou a frequentar os salões preciosos.
Tendo se recusado a tornar a se casar, ela se consagrou à educação de seus filhos. Investiu sobre eles, sobre a filha principalmente, os mais ricos sentimentos. Sua filha se casou em 1669 com o Conde de Grignan, um alto oficial da região da Provença, e foi juntar-se a ele, no seu posto, em 1671. A separação foi cruel para Madame de Sévigné. Assim, ela escreve à filha para reencontrá-la, apesar de todas as léguas que as separavam. É junto à filha que morre em 1696, no castelo de Grignan, para onde tinha ido encontrá-la.
As Cartas de Madame de Sévigné não contém apenas o testemunho desse amor maternal. Elas constituem também uma crônica do seu tempo. Sobretudo, o que faz o charme, sempre sensível dessas Cartas, é a mistura do artístico e do natural que também caracteriza a maneira de La Fontaine: como ele, é à força de seu talento que Madame de Sévigné  nos dá a impressão de uma perfeita espontaneidade. Expressão de um temperamento muito rico, sua arte imprime na literatura do século XVII uma nota certamente original.”[1] (LAGARDE, André,  MICHARD, Laurent. Les Grands auteurs français. Textes et littérature du Moyen Âge au XXe siècle, avec la collaboration de Jacques Monférier. Paris, Bruxelles, Montréal: Bordas, 1971.)

O fragmento do manual me fez entender a declaração de consolo da avó do narrador de Proust e o seu desconforto diante da surpresa da Sra. de Villeparisis de que a filha (mãe do narrador) lhe escreveria todos os dias. Logo depois, a Sra. de Villeparisis descobre ser a avó do protagonista uma leitora de Madame de Sévigné e pergunta de maneira imprudente rsrsrs: “Não acha um pouco exagerada essa preocupação constante com a filha?” (p. 242). A avó desiste de qualquer debate.
 Ao ler os excertos das cartas de Madame de Sévigné que encontrei, percebi que, mais que uma citação, as relações entre o texto de Proust e da autora do século XVII são relações muito “por dentro”, elas têm a ver com a admiração de uma personagem, no caso, a avó, mas têm completa sintonia com a maneira como o narrador vai desvendando Balbec para nós, os leitores. É uma afinidade “metodológica”, cuja essência está contida no fragmento que já transcrevi, da forma como a avó do narrador conhecia o texto da autora que admirava. Isso me parece muito engenhoso. Por meio de uma avó leitora, o personagem vai aprendendo a perceber o mundo nos seus detalhes, na experiência de uma primeira liberdade (parcial, decerto), e o narrador nos entrega o resultado desse foco, o texto, de maneira muito afetiva:

“Eu sabia, quando estava com minha avó, que o meu penar, por maior que fosse, seria acolhido numa piedade ainda mais vasta; que tudo o que era meu, meus cuidados, meu querer, seria, em minha avó, absorvido num desejo de conservação e acréscimo de minha própria vida muito mais forte do que aquele que eu mesmo tinha” (p. 217)

Tudo o que escrevi aqui acontece em um pedaço do segundo volume. Não tenho como garantir que Madame de Sévigné continuará conosco, comigo..., afinal, o volume não terminou e ainda me faltam 5!... No entanto, fiquei particularmente encantada com o modo como a sua obra comparece, para além da citação direta e/ou integral (que minha descoberta recente não permite cotejar), em um nível íntimo, de braço dado com uma avó.

Na próxima semana, algumas traduções muito livres de Madame de Sévigné!



Indicações:
·         A Tese de Beatriz Polidori Zechlinski está disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/arquivos/BEATRIZZECHLINSKI.pdf (acesso em 13 de abril de 2016)
·         A edição de À sombra das raparigas em flor que utilizo foi traduzida pelo Mário Quintana (São Paulo: Globo, 1996).




[1] Tradução minha.

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