“Esforçava-me
por emigrar para pensamentos eternos” (Marcel Proust)
No segundo volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust: À sombra das raparigas em flor,
o narrador-protagonista sai de casa. Ainda é uma saída tímida, viaja com a avó
e uma empregada da família até Balbec (cidade ficcional). Viaja com o coração
partido, mas disciplinado: “Em Paris, eu me tornara cada vez mais indiferente a
Gilberte, graças ao Hábito. A mudança de hábito, isto é, a cessação momentânea
do Hábito, terminou a obra do Hábito quando parti para Balbec” (p. 196). O
coração partido, então, não tem a ver com Gilberte, mas com a própria mãe:
“Pela vez primeira tive a sensação de que minha mãe podia viver sem mim,
dedicada a outra coisa, com outra vida diferente” (p. 200). No primeiro volume,
seu sofrimento ante a demora da mãe para o beijo noturno é de cortar o coração.
Para consolar o neto, a avó afirma: “– Minha filha, estou a ver-te que nem Madame
de Sévigné, com um mapa sempre diante dos olhos e sem deixar um instante de
pensar em nós” (p. 201). Essa referência me despertou.
Eu não me lembrei imediatamente
onde havia lido esse nome, mas com pouco esforço cheguei à fonte. Eu tinha
conhecido Madame de Sévigné na excelente tese de Beatriz Polidori Zechlinski,
que tive o prazer de examinar, em 2012. Beatriz não distinguiu a obra da
autora, mas a referiu no âmbito das relações literárias da França do século
XVII. Então, lá fui eu recuperar essas referências. A pesquisadora destacou a
importância da obra epistolar de Madame de Sévigné para elucidar práticas de
leitura da época, para aclarar as relações de amizade estabelecidas por ela e indicar
a sua recepção e a de seus amigos de livros publicados no contexto. Esses
elementos, certamente muito importantes para quem se dedica a estudar as preciosas e os salões literários, não me
informavam, porém, acerca da presença de Madame de Sévigné no romance de
Proust. Minha ignorância completa da obra epistolar da autora não me dava
elementos para pensar também sobre intertextualidade:
“Esse termo designa ao mesmo tempo uma propriedade
constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou
implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros
textos” (CHARAUDEAU, Patrick, MAINGUENEAU Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008. p.
288).
Proust, entretanto, mais uma vez me
valeu e, enquanto eu devorava as sua páginas, descobri que a avó do narrador
era uma leitora voraz de Madame de Sévigné, esta se tornara sua companheira de
viagens!: “Minha avó, porém, havia chegado a Madame de Sévigné por dentro, pelo
amor que tinha aos seus e à Natureza, e ensinou-me a apreciar suas belezas, que
são muito diversas das mencionadas” (p.205). O narrador refere, em seguida, a
coincidência de um encontro com um parente de Madame de Sévigné, um pintor, e
alude a uma sintonia entre o método da autora e esse seu parente: “Em Balbec,
dei-me conta de que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma forma que o
pintor, isto é relacionadas com a ordem de nossas percepções e não
explicando-as primeiro pela sua causa” (p. 205). Nesse momento, achei que era
hora de ir atrás de uma carta de Madame de Sévigné e de conhecê-la melhor.
Fui à obra Les Grands auteurs français de Lagarde e Michard:
“Nascida em Paris em 1626, Marie de Rabutin-Chantal,
neta de Santa Joana de Chantal, ficou órfã aos 7 anos. Seu tio, Christophe de Coulanges,
deu-lhe os mais eminentes mestres, que lhe ensinaram o italiano, o espanhol e o
latim.
Em 1644, ela foi desposada pelo marquês de Sévigné,
que, entretanto, foi morto em um duelo em 1651. Viúva aos 25 anos, com dois
filhos, ela se retirou para o castelo de Rochers, próximos a Vitré. Depois,
voltou a Paris onde passou a frequentar os salões preciosos.
Tendo se recusado a tornar a se casar, ela se
consagrou à educação de seus filhos. Investiu sobre eles, sobre a filha
principalmente, os mais ricos sentimentos. Sua filha se casou em 1669 com o
Conde de Grignan, um alto oficial da região da Provença, e foi juntar-se a ele,
no seu posto, em 1671. A separação foi cruel para Madame de Sévigné. Assim, ela
escreve à filha para reencontrá-la, apesar de todas as léguas que as separavam.
É junto à filha que morre em 1696, no castelo de Grignan, para onde tinha ido
encontrá-la.
As Cartas
de Madame de Sévigné não contém apenas o testemunho desse amor maternal. Elas
constituem também uma crônica do seu tempo. Sobretudo, o que faz o charme,
sempre sensível dessas Cartas, é a
mistura do artístico e do natural que também caracteriza a maneira de La
Fontaine: como ele, é à força de seu talento que Madame de Sévigné nos dá a impressão de uma perfeita
espontaneidade. Expressão de um temperamento muito rico, sua arte imprime na
literatura do século XVII uma nota certamente original.”[1] (LAGARDE, André, MICHARD,
Laurent. Les Grands auteurs français.
Textes et littérature du Moyen Âge au XXe siècle, avec la
collaboration de Jacques Monférier. Paris, Bruxelles, Montréal: Bordas, 1971.)
O fragmento do manual me fez
entender a declaração de consolo da avó do narrador de Proust e o seu
desconforto diante da surpresa da Sra. de Villeparisis de que a filha (mãe do
narrador) lhe escreveria todos os dias. Logo depois, a Sra. de Villeparisis
descobre ser a avó do protagonista uma leitora de Madame de Sévigné e pergunta
de maneira imprudente rsrsrs: “Não acha um pouco exagerada essa preocupação constante
com a filha?” (p. 242). A avó desiste de qualquer debate.
Ao ler os excertos das cartas de Madame de
Sévigné que encontrei, percebi que, mais que uma citação, as relações entre o
texto de Proust e da autora do século XVII são relações muito “por dentro”,
elas têm a ver com a admiração de uma personagem, no caso, a avó, mas têm
completa sintonia com a maneira como o narrador vai desvendando Balbec para
nós, os leitores. É uma afinidade “metodológica”, cuja essência está contida no
fragmento que já transcrevi, da forma como a avó do narrador conhecia o texto
da autora que admirava. Isso me parece muito engenhoso. Por meio de uma avó
leitora, o personagem vai aprendendo a perceber o mundo nos seus detalhes, na
experiência de uma primeira liberdade (parcial, decerto), e o narrador nos
entrega o resultado desse foco, o texto, de maneira muito afetiva:
“Eu sabia, quando estava com minha avó, que o meu
penar, por maior que fosse, seria acolhido numa piedade ainda mais vasta; que
tudo o que era meu, meus cuidados, meu querer, seria, em minha avó, absorvido
num desejo de conservação e acréscimo de minha própria vida muito mais forte do
que aquele que eu mesmo tinha” (p. 217)
Tudo o que escrevi aqui acontece em
um pedaço do segundo volume. Não tenho como garantir que Madame de Sévigné
continuará conosco, comigo..., afinal, o volume não terminou e ainda me faltam
5!... No entanto, fiquei particularmente encantada com o modo como a sua obra
comparece, para além da citação direta e/ou integral (que minha descoberta
recente não permite cotejar), em um nível íntimo, de braço dado com uma avó.
Na próxima semana, algumas
traduções muito livres de Madame de Sévigné!
Indicações:
·
A Tese de Beatriz Polidori Zechlinski está
disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/arquivos/BEATRIZZECHLINSKI.pdf (acesso em
13 de abril de 2016)
·
A edição de À
sombra das raparigas em flor que utilizo foi traduzida pelo Mário Quintana
(São Paulo: Globo, 1996).
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