terça-feira, 6 de agosto de 2024

Eu, Júlia e nossos óculos

 

Em 2015, escrevi um conto que foi publicado em uma revista e será republicado este ano, em livro. Há 9 anos, eu não poderia imaginar o caminho que esse texto/eu percorreria. No dia 23/7/24, li um fragmento de Correio da roça (1913), de Júlia Lopes de Almeida, com minha orientanda Milena Chagas, fragmento que tem tudo a ver com o conto! Essas sintonias que encontro com Júlia me surpreendem e encantam desde que a sua obra entrou em minha vida, em 2020.

Correio da roça é um romance epistolar. Um grupo de mulheres troca cartas, de uma fazenda, chamada Remanso, para a cidade do Rio de Janeiro; da cidade para a fazenda. Uma grande amizade mantém essa troca, de aprendizagem mútua, de crescente cumplicidade.

 

Eis o fragmento da carta 13.

(...)

Como esta carta é toda em resposta à tua última, aí te mando os óculos, os óculos dos fatídicos 40 anos, óculos de vista cansada, que bem se aplicou durante a mocidade!

Não forces a vista, que mais depressa estragarás os teus ainda belos olhos castanhos. Não os desprezes nas tuas leituras à noite, nem quando durante o dia cerzires na tua sala de costura as meias da família e a tua roupa branca. É uma coisa a que nos dedicamos pouco, essa de consertar roupa branca, e de interesse capital, entretanto! Cordelia não deve esquecer essa ciência, na sua aula para as meninas da colônia. Mas, voltando aos óculos, não sei se eles te servirão: têm sido meus companheiros íntimos, digo íntimos porque também, como tu, ainda tenho um resto de faceirice que me obriga a ocultar de olhos estranhos o aparelho que ponho às vezes nos meus... e já que chegamos a esta parte sentimental, deixa-me dizer-te tudo! Também, como tu, tenho as minhas melancolias sem causa determinada, melancolias infantis, que me alvoroçam e me fazem cismar! Como o teu, o meu coração é uma urna de saudades indefiníveis e de ansiedades irrealizáveis.

Ainda tu podes abrir a tua janela e mostrar o teu rosto sem máscara às estrelas piedosas. Eu não. Os astros do nosso céu rir-se-iam dos meus devaneios dolorosos e das minhas interrogações; e cada vez, a qualquer hora que numa expansão silenciosa eu volvesse o meu olhar para o céu, não faltaria quem do fundo da treva, dentre as pedras das calçadas ou da caliça das paredes vizinhas, escarnecesse do meu idílio... Na cidade é preciso fingir, fingir a todos os momentos, dentro de casa como na rua, de dia como de noite. E a exigência que faz de nós a sociedade, que incorre em todas as faltas, mas não perdoa nenhuma... Tu ainda tens a consolação das tuas filhas, que te engrinaldam de risos e carinhos a existência. E eu? O meu único filho anda agora pelo Egito, consultando esfinges, e o meu marido vive, como sabes, completamente desinteressado da minha pessoa. E é por tudo isso que eu suspiro pela velhice, a velhice absoluta, a doce velhice consoladora e profícua, porque para mim, como para ti, que tens mais espíritodo que eu e maior coração, velhice não quer dizer esterilidade nem abandono. A mulher sã de corpo e alma, chegada essa hora que intimida os fracos, encontra na experiência adquirida nos seus anos de mocidade e de idade madura, poder para executar grandes obras de piedade e de regeneração. Há sempre muito que fazer na vida e a nossa última quadra não é com certeza a menos produtora. Para isso, minha Maria, é preciso ter coragem e não dissipar inutilmente as forças afetivas da nossa alma... Guardemos sempre um pouco das nossas energias para o que há de vir. Confesso-te as minhas esperanças, para dar-te ânimo, como te confessei as minhas desilusões, para te demonstrar que me tens sempre por companheira fiel na jornada da vida. Resta-nos a nós duas uma grande felicidade: temos sabido ser amigas uma da outra através de toda a existência, sem a menor sombra de traição, e isto entre mulheres é tanto mais raro, quanto mais lindo.

Prometo-te ser mais prática na minha primeira carta. Teu afilhado Eduardo Jorge trouxe-me, de um passeio qualquer que fez ao campo, sementes de cássia e de flamboyant, que aí te remeto para o viveiro do Remanso. Nem só de pão vive o homem. Planta árvores de flores e abraça Cecilia, que tão bem me compreendeu e a quem tanto quero.

Fernanda

ALMEIDA, Júlia Lopes. Correio da roça. Rio de Janeiro: Janela Amarela Editora (Edição do Kindle), 2022. pp. 54 a 56.

 

Há um conjunto de delicadezas que se espalham pela página. E eu fiquei profundamente tocada pela forma como a Fernanda de Júlia enfrenta o tempo e ajuda sua amiga Maria a enfrentá-lo.

Antes, algumas confissões. Foi uma glória quando precisei de óculos de leitura! Três anos antes, meu oftalmologista me disse que já eram necessários, mas que ele queria “segurar”, para não me deixar dependente. Respeitei sem saber bem por quê. Mas quando eu não conseguia mais enxergar direito a comida no meu prato à mesa – vejam, nem foi a leitura! –, eu pedi. Na verdade, eu acho que os braços já obedeciam aos olhos no quesito distanciamento da página, mas o prato sobre a mesa ficava imóvel... Fiz óculos de aros pretos, nada discretos, tirei um número infinito de fotos, fiz palestras online ostentando, combinei esses óculos com batons de todas as cores da minha pobre coleção. Um dia, achei que um par era pouco, fiz um segundo e comprei na França um terceiro, que uso enquanto escrevo, amarelos, redondos, lindos!

Eu e as personagens de Júlia precisamos de óculos de leitura no mesmo momento, pelos 40. Quando fiz sorridente meus óculos, eu ouvi amigas alegando algo como uma ribanceira abaixo... Rebati: – Que bom estar de óculos para enfrentar a ribanceira!

Voltando à Júlia e às suas personagens, o trecho que copiei é todo sobre o envelhecimento e os óculos são um sinal claro disso. No meu conto de 2015, a ideia também é essa, muito embora eu tenha querido sobrepor temporalidades e fazer, não a portadora dos óculos, mas a sua própria mãe experimentar vê-los no rosto da filha que passou a precisar deles. A personagem Fernanda de Júlia devolve apoio e uma percepção positiva do passar do tempo à Maria. Sem positividade tóxica, felizmente! Afinal, ela faz confissões muito tristes. É uma mulher solitária: tem um filho distante, um marido indiferente. Mas há uma grande ousadia aqui:

A mulher sã de corpo e alma, chegada essa hora que intimida os fracos, encontra na experiência adquirida nos seus anos de mocidade e de idade madura, poder para executar grandes obras de piedade e de regeneração. Há sempre muito que fazer na vida e a nossa última quadra não é com certeza a menos produtora.

 

Atenção à abertura do trecho: Fernanda fala sobre mulheres que envelhecem com saúde. Em contexto em que nossos velhos e velhas sopram mais velas sobre o bolo diet, mas nem sempre estão “sãos de corpo e alma”, o trecho de Júlia pode parecer de mal gosto, mas volto a atenção à sua abertura. A personagem não massacra ninguém. Hoje, é como se falasse para quem tem boa genética, fez boas escolhas e escapou do imponderável (refiro-me a acidentes de várias ordens que atravessam cuidados e genética impecável)... Ah, Júlia, saúde para executar obras (nem falei em “grandes”), para continuar produtiva/produtivo..., e em boa companhia!

Há uma proposta linda na sequência: a amizade entre as mulheres. Na verdade, o livro é costurado pela amizade. Em 1913, Júlia escreveu o que tem sido repetido pelos “influenciadores da menopausa”: é preciso cultivar amizades nessa época da vida. Imagino Júlia sorrindo por cima dos óculos, desde antes de 1913! Quando não precisamos dos amigos e das amigas?

Como afirmei acima, o livro é sobre amizade e sobre como as mulheres podem apoiar umas as outras: “temos sabido ser amigas uma da outra através de toda a existência, sem a menor sombra de traição, e isto entre mulheres é tanto mais raro, quanto mais lindo”. Um trecho que faz pensar. Nas primeiras cartas trocadas entre Maria e Fernanda, há um pouco de ressentimento e desafio... A gente desconfia que essa amizade não vai sobreviver. Maria ficara viúva e desprovida de mais recursos além de uma fazenda decadente, vai com as filhas finamente educadas no Rio de Janeiro, para um cenário inóspito. Está deprimida, desabafa a sua desesperança com Fernanda. Esta vive no Rio, não foi forçada a abrir mão de nada, continua em dia com as modistas e dá conselhos sobre como o campo é salutar! Sugere à Maria que as filhas desta criem galinhas! Fernanda, tá de brincadeira?! Imaginem a reação de Maria! Mas, aos poucos, Fernanda vai convencendo Maria de que ela na verdade tem mesmo é uma crença inabalável na força das mulheres. Fernanda não recua diante das ironias iniciais de Maria e também faz a sua parte: em vários momentos das trocas, existem colaborações absolutamente práticas e materiais para o sucesso de projetos que, aos poucos, nascem entre as meninas de Maria e florescem entre elas para a transformação do Remanso. Fernanda envia mudas numerosas para serem plantadas na fazenda, reúne material sobre agricultura, conversa com pessoas, alonga-se em sugestões muito técnicas – que me fazem ter certeza de que Júlia fez muita pesquisa para alimentar a troca entre as amigas[1] – e mobiliza pessoas para ajudarem Maria e as filhas.

Tudo isso dá frutos e Maria rejuvenesce, alegra-se. As suas filhas também trocam cartas com Fernanda, tiram dúvidas, contam novidades, fazem encomendas. Júlia “planta” uma escola ao ar livre no Remanso e eu fico pensando que essa ideia deve tê-la fascinado tanto que ela voltaria ao tema três anos depois no seu livro A Árvore[2]. Imagino que Júlia leu sobre a árvore-escola em uma aldeia na Ásia: primeiro incluiu a possibilidade no Remanso, depois informou no seu livro miscelânea, escrito com o filho.

Tudo dá certo ao final nesse livro e... qual é o problema? Outro dia, ouvindo um programa de entrevistas de que gosto, em uma rádio local, ouvi um homem falando assim: é fácil ser feliz, por isso não haveria mérito em escrever a respeito, em escrever sobre a felicidade. Fiquei pensando que esse ser deve ter aterrissado de sua nave espacial para surpreender os terráqueos pós-pandêmicos, que lotam os consultórios de psiquiatras e terapeutas, com sua revelação bombástica... Que feliz! Na verdade, as mulheres que moram no Remanso edificam a sua felicidade com trabalho duro, depois do desespero inicial. É impressionante como mobilizam/adaptam a sua formação para o ambiente em que foram obrigadas a habitar. Destaco a forma como Júlia entrosa o útil e o utilitário dessa formação.

Nas suas cartas e encomendas, Fernanda oferece orientação, seu ombro amigo, ajuda material, logística e os seus óculos! Fernanda acredita em Maria e em suas meninas. Maria poderia ter se revoltado nas respostas, entretanto; poderia ter achado um absurdo as sugestões da amiga rica que nunca sujou as mãos de terra, mas sabe palpitar. Poderia ter achado de mau gosto sugestões e comentários. Mas soube aceitar a ajuda e os óculos! Com eles, realizou uma revolução completa em seu modo de viver. Mas nada foi fácil no caminho. Júlia não é boba. Aposta tudo na cumplicidade entre as mulheres. Com um olho acompanha a palavra que escorre do papel, com o outro e por cima dos óculos, parece sonhar um devir de aros e cores surpreendentes.   



[1] Essa faceta de pesquisadora se revela em outras obras de Júlia.

[2] Conferir: http://literistorias.blogspot.com/2020/09/158-anos-de-julia-lopes-de-almeida.html


Eu, Júlia, nossos óculos e o velho computador - funciona muito bem, obrigada!
O blog completou 9 anos.


segunda-feira, 10 de junho de 2024

1 ano da meia maratona do Rio

 10 de junho de 2024, hoje faz 1 ano que completei a meia maratona do Rio de Janeiro, ao lado de minha prima Andréia.

Esta manhã, no treino, rememorei o feito para algumas amigas e uma delas, a Clarice, com quem corri a parte final, depois das subidas, me disse: “- E quanta coisa em um ano, heim?!!” Eu não sei se ela falava dela, de mim, de nós duas, do país..., mas a certeza da Clarice me despertou a vontade de reunir uma parte dessa quanta coisa toda. Então, nesse aniversário de 1 ano da meia do Rio, eu me lembro:

  • ·        minha filha completou 15 anos;
  • ·        festejei meus 50 anos em uma casa de fado, ao lado de gente amada;
  • ·        ganhei um jogo de xícaras Fernando Pessoa & heterônimos da Susana!;
  • ·        chegaram os calores, em mais um ano de climatério;
  • ·        comecei a fazer reposição hormonal;
  • ·        mais um ano feliz ao lado de minha amada;
  • ·        em uma segunda-feira, minha filha adentrou desacordada o hospital, ficou na UTI por 3 dias, saiu andando plena do hospital e no sábado subiu ao palco e dançou, diante de nossas lágrimas e soluços;
  • ·        dormi no hospital com mamãe perto do Natal;
  • ·        parei de correr por meses;
  • ·        fiz 20 sessões de fisioterapia;
  • ·        voltei a correr;
  • ·        integrei na minha rotina o cuidado diário com meus pés, aprendido na fisioterapia;
  • ·        comecei a praticar calistenia;
  • ·        voltei a praticar yoga;
  • ·        comecei a meditar;
  • ·        abri minha mente a novos saberes;
  • ·  fui a Portugal, revi amigas, amigos, gente querida, admirável;
  • ·        conheci bibliotecas novas;
  • ·        conheci gente nova;
  • ·        escrevi um projeto de pesquisa novo;
  • ·        meu projeto foi aprovado com bolsa PQ pelo CNPq. É a segunda vez!;
  • ·        uma mesma unidade administrativa no meu trabalho me prejudica uma segunda vez;
  • ·        minha amada lançou seu primeiro romance e eu estava lá, a seu lado;
  • ·        mais um ano ouvindo comentários maldosos sobre mim e minha amada, de dois grupos: 1) gente abertamente preconceituosa e 2) gente pretensamente moderna e pretensamente estudiosa. Detalhe curioso e infeliz: só mulheres desferiram os golpes esse ano;
  • ·        um ano em que estou mais treinada para responder à gente do ponto anterior: pace e conteúdo;
  • ·        um ano em que não desenvolvi nenhuma couraça para essa gente. Minha pele está muito bem, obrigada;
  • ·        publiquei um livro;
  • ·        escrevi 2 livros em coautoria: um literário e outro acadêmico;
  • ·        escrevi resenhas, artigos, prefácio e orelha;
  • ·        um livro meu foi traduzido para o espanhol;
  • ·        tenho dois novos textos em coletâneas Off Flip;
  • ·        fui a vários lançamentos de livros;
  • ·        li livros maravilhosos;
  • ·        o clube do livro continua firme e forte: terminamos Moby Dick e começamos Os Maias;
  • ·        eu e minha amada realizamos um sonho e tem uma araucária plantada nele;
  • ·        sonhei novos sonhos;
  • ·        me decepcionei;
  • ·        me admirei;
  • ·        cultivei meus amigos e minhas amigas;
  • ·        vi gente querida, amiga, se afastar, respeitei;
  • ·        troquei de terapeuta;
  • ·        estou deixando o cabelo crescer outra vez;
  • ·        participei de bancas, comissões, dei aulas;
  • ·        estou em greve e o trabalho me acompanha;
  • ·        experimentei novas receitas e sabores;
  • ·        continuo a (tentar) estudar inglês;
  • ·        dancei em outras festas, com outros pares;
  • ·        ouvi;
  • ·        falei;
  • ·        briguei;
  • ·        chorei;
  • ·        dei gargalhadas;
  • ·        quebrei o tampo de vidro da mesa da sala com uma caneca de café;
  • ·        trouxe mais plantas para a minha vida;
  • ·        comprei um aspirador de pó – como vivi sem ele??!!;
  • ·        conheci outras paisagens;
  • ·        dirigi em novas estradas;
  • ·        tomei banho de rio, em rio gelado;
  • ·        tive paciência.

Um ano sem minha madrinha;

Cinco anos sem o papai;

Onze anos sem João.

 

Há um ano, eu estava bem treinada para a meia do Rio: não tinha faltado a nenhum treino, treinei na chuva (eu nunca faço isso e encarei), fiz musculação em academia, cuidei da alimentação, estava forte e... machucada. Sem saber! Corri machucada, fiz longas caminhadas na sequência, machucada. Precisei parar, tratar e recomeçar. Hoje, minha amiga Audrey me provocou: quando vai ser a próxima? Não sei. Hoje, subidas. O mesmo tênis... Hoje, corri com minhas amigas rápidas, fortes. É puxado para mim. Mas elas me impulsionam. Se algumas mulheres tentaram me fustigar – porque talvez não saibam correr... –, outras mulheres correm ao lado; caminham comigo; uma, de mãos dadas..., e eu reconheço: “- quanta coisa em um ano!”. Bora, Clarice!

em 10/06/2024

10/06/2023

Muitos quilômetros...