segunda-feira, 4 de maio de 2020

“– Ceis vivem mal, heim?”, disse o vírus.

Aqui na França o déconfinement começa semana que vem. Em duas semanas, terei de decidir: 1. se envio a minha filha à escola, afinal a sua “série” é uma das “escolhidas” para a rentrée do dia 18, ou 2. se desobedeço... e aguardo “fora da lei” a possibilidade de retorno a nosso país. Escolha difícil. Mas esse texto só tangencia a vida escolar, ele se agarra mesmo a alguns outros aspectos dessa rentrée geral, ou seja, dessa volta ao trabalho, à escola e à vida a qual todos e todas estávamos acostumados.
Eu não pertenço ao grupo de pessoas que acha que esse vírus nos deu a “grande oportunidade de repensar o presente”, nem pertenço ao grupo daqueles que se julgam imunes ao contágio, pela sua ignorância ou pela sua (má) fé. Sim, eu li gente pretensamente religiosa proclamando sua imunidade. Sobre a “grande oportunidade”, como encarar dessa forma um agente que ameaça, abate e mata? Não incorro no mau gosto e na crueldade de achar um assassino oportuno.
O confinamento jogou na nossa cara, entretanto, que moramos em casas pequenas, ou porque não temos dinheiro para morar em casas grandes, ou porque os construtores propuseram ao longo de décadas essa solução aos que não podem pagar para que eles morem em casas de amplos jardins. O confinamento jogou na nossa cara que nos deslocamos pela cidade, entre cidades e entre países em meios de transporte que nos apertam e nos fazem doentes. Jogou na nossa cara que alguns de nós têm imensas dificuldades de cuidar e amar justamente aqueles que os primeiros prometeram amar ou que julgavam amar. Jogou na cara que nem para movimentar a economia nos grandes centros comerciais e nas lojinhas nos movemos em condições salubres!
Eu fui uma criança de apartamento que brincava em poucos metros quadrados, nos corredores do prédio e na entrada. A primeira casa, casa, em que morei tinha um pequeno jardim à frente que cultivei com amor. Meu jardim atual (ou seja, o do Brasil), tem 4 m2 e é cultivado com amor também. Agora, que voltei a um apartamento, como sinto falta de um canteiro! Eu não brinco no pátio, nem isso podemos (!), escrevo e leio muito.
Mas tenho muita dificuldade em ficar em ambientes fechados com muita gente. Não uso elevador e preciso tomar remédio para viajar em aviões e trens. Já passei mal nesses veículos, em ônibus e metrô também, e precisei de ajuda de conhecidos e desconhecidos (no Brasil e no exterior). Em algumas situações, corri riscos. Se eu já peguei transportes lotados? Já, em uma época em que eu não tinha o problema que me constrange já há muitos anos. Mas eu sou uma poeirinha cósmica... As medidas de proteção que o governo francês (e outros pelo mundo civilizado afora, obviamente estou retirando o meu país desse grupo, pelo presidente) têm proposto ao deslocamento em transportes públicos me despertam particular interesse justamente pelo meu problema!  
Foi como se ficasse claro de repente que, em horários em que um imenso contingente de pessoas é liberto dos seus postos de trabalho, apertar-se até a falta de ar nos meios de transporte não é saudável ou humano. Como foi possível que por séculos e décadas a disparidade entre quem se desloca confortável em carruagens, aviões particulares e grandes automóveis e o desumano apertar no metrô, das freadas bruscas no ônibus para “nos ajeitar”, do abuso e do desligamento do ar condicionado do avião em solo, ou a diminuição de sua potência pelos ares e para economizar... fosse aceito pela humanidade de que eu também faço parte?! Por séculos e décadas suportamos o que hoje, em crise sanitária, é inaceitável.
O vírus não ofereceu oportunidade alguma, ele pegou nossos braços e nos sacudiu até nos machucar. Eu me comovo todo dia com a insistência na divulgação do telefone para a denúncia da violência doméstica aqui. E prometemos amar e cuidar.  
Conversei com uma amiga no fim de semana. Tudo parece apontar para que não será possível retomar a vida nas mesmas bases de antes. Entretanto, ela me disse que seria preciso uma vontade e um esforço real para mudanças... Ela tem razão. Na minha vida de antes, a cada semana, em pelo menos 2 dias, eu me deslocava por quilômetros, de carro, para estar em 4 bairros diferentes inevitavelmente. Um desafio geográfico e temporal; causa de ansiedade, aborrecimento e risco. 3 desses destinos foram escolhas feitas por mim... Eu determinei que haveria de me deslocar de forma ansiosa, aborrecida e com risco a mim e à minha própria filha, na minha vida “normal”.
Não aprendi nada com o coronavírus. Eu sempre lavei embalagens na volta do mercado! Pode perguntar à minha mãe! Pode perguntar ao Luiz! O coronavírus me desperta medo. Terror de cair doente em terra estrangeira com uma criança sob minha responsabilidade. Mas toda essa situação move minhas idéias e resistências... e eu sonho com mudanças. Seria preciso uma vontade e um esforço real para mudanças... Ouço a minha amiga novamente.
O que não vamos mais suportar quando a nossa vida “normal” bater outra vez à nossa porta? O que será inaceitável? O que significa “reaprender a viver”, expressão dos discursos dos políticos que se deslocam em aviões de poucas pessoas?... Não tenho respostas, gente. Mas queria que a gente começasse a acordar novas perguntas.
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