sábado, 4 de abril de 2020

Meu longo caminho até o supermercado: uma crônica da França


Detesto ir ao mercado. Mas há muitos anos assumi que é uma coisa chata que devo fazer uma vez por semana..., ou duas..., ou três... que coisa emmerdante[1] chegar em casa e me dar conta de ter esquecido a manteiga!!  Que irônico ter desdenhado a farinha e, em pleno sábado à tarde, ter vontade de comer um bolo feito em casa, com minha filha!! Mas nem nos mais aflitivos pesadelos em que me bato entre corredores de enlatados ameaçadores, sem conseguir escapar das amarras do sódio, eu imaginaria que, acordada, pudesse caminhar para o mercado como quem vai em missão. Hoje, enquanto amarrava o cabelo em frente ao espelho, cheguei a imaginar uma maquiagem preta e verde sobre a pele do rosto. Hoje, eu fui cantando andar com fé eu vou, mas, às vezes, vou mesmo de o senhor é meu pastor.

Há uma roupa de rua pendurada na entrada de casa. Eu me visto na entrada e me dispo nela também. Imagino a preocupação de meus alunos. Mas sosseguem: moro no 4º andar de uma cidade pequena. Não tenho vizinhos de altura. Ninguém terá interesse em ser fotógrafo voyeur de uma professora obscura de 46 anos, sem qualquer intervenção cirúrgica remodeladora. Nenhuma foto comprometedora ameaçará uma defesa. Essa roupa de batalha é usada para comprar cebola, alho, arroz, cenoura, leite, carne e pão. Hoje, comprei shampoo! Há duas semanas lavo o cabelo com sabão para deixar o pouco shampoo para a filha. Mas é sabão de Marseille! Phyna.

Todo o dia em que não vou ao mercado, vejo as autoridades na TV com seus números e gráficos. Assisto à análise dos médicos. Eles estão no hospital e na TV, é uma jornada imensa! Assisto ao desfilar do rosário: o diretor geral de saúde, o ministro, os ministros, o ministro da educação, o primeiro ministro. Esta semana, Édouard Philippe foi sabatinado por mais de 3 horas. Perguntas difíceis. Vejo a movimentação do presidente, quase me lembro da semana do presidente (no SBT) da minha infância e que Sílvio Santos, que não pode frear o tempo no seu corpo, quer ao menos reviver o mau gosto no tempo. Já escrevi que os franceses têm muito que reclamar do seu presidente. Aquela dama que substituiu o paizinho na presidência de certo partido e que profere declarações tão horríveis quanto ela é de fato uma mulher bela tem subido seus ataques. Tem evocado a lentidão do Palácio do Eliseu em decretar o confinamento. Só esqueceu-se de que ela mesma não sabia bem se ia ou se ficava (essa semana, o Libération lembrou. Meninos, eu li). O fato é que Macron esta semana apercebeu-se da necessidade de repatriar a sua gente: ser francês significa alguma coisa (...) quando há inquietude, a nação está lá, ela protege. Sinceramente, fiquei pensando no genocida que 58 milhões de brasileiros colocaram na presidência do nosso país: Algumas pessoas vão morrer, o brasileiro tem de parar de achar que o Estado vai resolver. Macron não é nenhum santo, mas é um líder. Seus colegas de Eliseu devem quebrar o pau entre eles, mas para todo mundo, para a bela dama que vocifera atrocidades e para outros oponentes, eles estão juntos. Os outros que latam! No Brasil é o presidente que late, que espuma, atleta falso, de passado duvidoso e presente de aterrar! Cada um vai para um lado, às vezes se encontram em encontrão, então caem como fruta podre. Os homens (mal) fardados, superiores na hierarquia original, são apequenados, não no seu desejo secreto de golpe, mas no seu bom senso, no seu patriotismo. Os eleitores com sobras de humanidade temem, pedem união. Não tem união com o genocida que prescinde dos nossos velhos e que finge não saber que pode perder os nossos jovens[2].

Hoje, o chefe da polícia de Paris falou uma besteira de grandes proporções: estabeleceu uma relação entre quem está lutando pela vida na reanimação e o desrespeito ao confinamento... Consigo achar explicação na pressão, na obrigação de defender publicamente o confinamento, no cansaço e no contexto (estava na rua quando falou, microfone aberto). Mas foi cruel e não há justificativa. Por todo lado, pediram-lhe a cabeça. Uma coisa que os franceses curtem.

Amanhã, chegam 13 pacientes de Estrasburgo aqui em Portiers, para desafogarem um pouco o grande leste. Vêm no TGV medical. Tenho gente querida em Estrasburgo. Sei que estão bem, entretanto. Que essa cidade que me acolheu e acolheu a minha filha tenha meios de ajudar esses 13 guerreiros que vêm em alta velocidade, mas quase sem conseguir respirar...

Faço a minha lista. Do que vou abrir mão? É um critério engraçado para uma lista de compras, mas afinal sou uma mulher com dois braços e duas sacolas grandes. O relógio de corrida me disse que tenho 1,5 km para ir e outro 1,5 km para voltar. Então, não basta querer, é preciso abrir mão. Cabelo amarrado, roupa de rua, álcool no bolso envolvido em papel higiênico raro, atestação, lista, celular, duas sacolas na bolsa... Beijo na filha. Mãe, você fica fora 1 hora? Sim, se eu não voltar em 2, você deve avisar às pessoas que eu já te ensinei. Não tenho máscara.

Uma das coisas mais lindas de ser um caminhante é ter um rio brando perto de casa. Atravesso o Clain, vejo os patos adoráveis com quem brinquei quando ir ao mercado era só enfadonho e subo a rua cuja inclinação me prova que estou em ótima condição física. Avanço. Atravesso. Entro. O mercado é pequeno, mas a gente se espalha bem. Uns 2 metros! O chão está pintado, cada um no seu quadrado. De repente, eu me lembro de jogar amarelinha. Contenho-me. As mulheres que trabalham no caixa são peixes em aquário. Meto tudo nas bolsas. Pago. Arrumo melhor na porta. Tento equilibrar o peso.

Na volta, vejo a escola da minha filha. Um edifício lindo construído pelos jesuítas. A escola está vazia. Pessoas mascaradas sobem a rua. Lamento não ter investido na maquiagem verde e preta. Lamento não ter tentado uma máscara de pano de prato. É um curioso Carnaval esse, em que preferimos dançar bem afastados. Nem os longos braços do boneco de Olinda seriam capazes de nos juntar... Estranho Carnaval esse que acontece quase no Domingo de Ramos. Revejo o Clain. Até semana que vem.

Nudez na volta. Sou destaque de fim de desfile. Minha alegoria é o spray de água sanitária. Nunca vi embalagens mais limpinhas! A gente tem uns orgulhosos bem idiotas na vida... Banho completo também. Esse negócio de ir ao mercado em pandemia é uma trabalheira danada. Nenhuma garantia de voltar saudável, a não ser a fé no cuidado e na música do Gil.

Enquanto escrevo, tento ficar em dia com os médicos, os ministros, as sabatinas, os números, a França, a Espanha, o Brasil, o whatsapp e a filha. Ai, esqueci da Itália! Não posso esquecer. Pra que tanta pressa, meu Deus? Balanço a cabeça para mim, peixe de aquário. Aquário com ascendente em gêmeos! A curva da reanimação inflecte devagar. É sutil, mas anima. Assisto ao 15, canal que é também o número da urgência. O médico que assume o turno da TV agora pede calma, nada de rua, gente de Carnaval! O confinamento continua a ser necessário. Nada de mercado três vezes na semana! Eu me acalmo. Mas o rio faz falta, tanto quanto os livros das bibliotecas com que sonhei quando me preparei para essa aventura... Lenine pede Paciência. Aceito. Desfilo duas Sapucaís[3] para ir e mais duas para voltar atrás do arroz, segurando o grito Liberdade, liberdade.

Esqueci do alho.


Poitiers, le 3 avril 2020


Venço 3 portas até a rua. 



[1]  Emmerder..., não precisa traduzir, não é? Quero esse verbo na língua portuguesa já!
[2] Esta semana, a Bélgica chorou a morte de uma menina de 12 anos.
[3] A pista do sambódromo do Rio tem 700 metros.

8 comentários:

  1. Oi professora querida!
    Majestoso seu texto, isso me faz lembrar das suas aulas inesquecíveis. Porém não deixei de perceber a triste e o tempo das sua linhas sinceras. E a força que emana de você e a maneira que como mãe, passa para sua filha. E vamos de Gil!!! Porque a fé não falha nunca!!! Fique com Deus, e que Ele nos proteja. Beijos.

    Sirlene

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    1. Querida, obrigada por me guardar nesse lugar tão carinhoso de sua memória! Cuide-se também! Beijão.

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  2. Em meio a tristeza que encontro nessas linhas noto quão magnífica a escrita.
    Como pode tornar tão belo com palavras uma experiência como essa?
    Seria uma das graças da escrita e do incrível repertório de uma mulher totalmente admirável.

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    1. Querida, obrigada por me fortalecer, por sua vez, com seu afeto. Um grande beijo.

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  3. Olá Marcella, mais uma das coisas boas destes tempos tão difíceis, foi conhecer seu blog. Graças à Wal Melão, que nos apresentou esta incrível crônica. Parabéns! Vou segui-la com ansiedade pelas próximas. Obrigada 😘

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  4. Cara Lourdes, seja bem vinda, pela mão da minha amiga Wal! Fique à vontade. Grande beijo.

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  5. Gratidão Ivo Melão por nos apresentar tamanha preciosidade. Fiquem bem. Você e sua Filha. E também as pessoas da cidade que te acolheu. Que o sistema alimentar que destrói pessoas e natureza, seja compreendido como não mais viável.

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