segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Procura-se o respeitável público

O texto desta segunda ia ser outro, mas, ontem, fui ver no Teatro Guaíra A Bela e a Fera, o ballet, com a família.
Eu ADORO o romance de Madame de Villeneuve[1] e acho sinceramente que é ainda uma das melhores animações já feitas pelos estúdios Disney (de 1991)! Todos devem se lembrar de que a animação foi indicada ao Oscar de melhor filme, o que até aquele momento não era comum. Eu também sou apaixonada pelo filme de Jean Cocteau (1946), com Jean Marais, como a Fera! Acho interessante o filme de Christophe Gans, com a linda Léa Seydoux e com Vincent Cassel... É difícil adjetivá-lo. Devo apontar, porém e quase em um sussurro envergonhado rsrsrsrs que, se eu fosse solteira, cortejaria Vincent Cassel, que mora no meu Rio de Janeiro... Segredo.
Há qualquer coisa sobre ir a um ballet, ir a uma ópera ou apreciar um concerto que começa pelo menos um dia antes na minha vida. Eu, que estou muito longe de honrar a minha amizade com Ronaldo Fraga, pela pouca (nenhuma?) preocupação com o vestir..., escolho minha roupa um dia antes para ir a um ballet! Ontem, pendurei um vestido, separei a meia calça. Perguntei à filha se não queria escolher a roupa também. A justificativa foi a de que o espetáculo seria de manhã, então para evitar atrasos era bom deixar tudo preparado. Ela aceitou.
Minha primeira ópera foi O Navio Fantasma de Wagner, dirigido por Gerald Thomas e realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu tinha 13 anos. Meu pai comprou ingressos para mim e para a minha mãe. Não dava para comprar para três, até porque ganhei roupa nova! Fomos nós duas e eu fiquei extasiada. Fui muitas outras vezes ver óperas, concertos, ballets em espetáculos gratuitos ou a preços populares. Sempre considerei essas experiências como coisas muito especiais, que mereciam que eu me preparasse de corpo e alma para elas.
O primeiro ballet da Clarinha foi A Branca de Neve e foi no Guaíra. Ela era tão pequena... Comportou-se muito bem até a metade, depois cogitamos ir embora..., mas não foi realmente preciso. Ano passado, ela foi a um concerto muito didático, também no Guaíra (Clarinha é menina do Paraná, meu povo!) concebido para crianças, em que o maestro parava muitas vezes e explicava. Teve até “Nessum Dorma”. Ela ficou surpresa.
Ontem, havia uma grande motivação. Uma das amigas da escola se apresentaria! A menina é uma das pétalas da rosa mágica da Bela e a Fera de Disney, ops! O espetáculo seguiu a animação na maior parte do seu desenvolvimento. Não achei mau, afinal o filme constitui uma reserva de sentido para a maior parte das crianças que foram assistir. Que eu saiba, o romance de Madame de Villeneuve não tem ainda tradução (posso estar enganada) em português. Se tiver sido traduzido, é bom lembrar que não se trata de Literatura Infantil (sequer juvenil...). Essa não é uma história para crianças, ainda que tivesse sido possível adaptá-la.
Sabemos que a rotina de ensaios e a competição entre bailarinos é muito estressante. Talvez esse adjetivo seja um eufemismo. Mas eles realizam um milagre. São perfeitos. Quando erram, parece quase uma concessão à humanidade. Esqueçam modelos, atores e atrizes de sucesso! O corpo dos bailarinos é uma escultura: eles são a obra prima, mas foram também os seus próprios escultores. Criador e criatura de si mesmos. Bailarinos em cena são um exemplo extraordinário de colaboração para a constituição de um sentido, de uma narrativa, em que tudo o que é diferente é essencial para o conjunto. Três bailarinas empinam; vem a solista; passa um bailarino em diagonal; envolve a sua parceira em um abraço; entram dez, doze, de uma vez e tudo aquilo nos transporta. Estamos enlevados. É preciso confiar muito em alguém para entregar seu corpo, que é lançado no ar e recuperado na descida, como faz a bailarina que sorri. Ela não hesita; sabe que ele vai estar lá. Notem bem: ela sabe que ele vai estar lá! É preciso amar com paixão (e não importa que seja só naquele momento) para o beijo final.
O espetáculo a que assistimos tinha muito conjunto. Era gente à beça em cena. Sabíamos quem eram os protagonistas, mas a encenação dividiu o prazer do movimento em muitos pedaços, entre muitos famintos. Gostei. Os figurinos estavam lindos e achei muito delicada a maneira como cada vestido de Bela envolvia a personagem que se transformava também: de menina de azul, à jovem corajosa e salvadora do pai; de mulher que decotada senta à mesa com uma Fera que a corteja, mas a quem ela dirá não, pois era preciso que ele lembrasse o que é ser homem novamente para que estivesse à altura de recebê-la como mulher; até o resgate do personagem, não à toa, ela em dourado (não em amarelo Disney)...
O cenário estava bonito também. Havia qualquer coisa entre o filme de Christophe Gans (Vincent Cassel me assombrando) e referências mais batidas de contos de fadas. Por que não?
Sabe o que lamentei? Não haver músicos...
Mas... o que o público tem a ver com isso? Meu título é como o endereço equivocado do destinatário em uma carta condenada a não chegar?
O espetáculo foi concebido para crianças. Elas eram numerosas na plateia e deram um show! Um show de atenção. Acho que, em quase duas horas, ouvi dois gritinhos e devem ter sido de prazer ou de susto: a Fera!!! No início, quando as luzes foram enfraquecendo, as pessoas que esperavam para entrar se apressaram. Ouvimos recados pelo sistema de som: é proibido fotografar, desliguem os celulares... Mas quando as luzes estavam apagadas e começou a narração – já era o ballet, vi adentrarem contingentes numerosos de pessoas. A cortina do palco se abriu. Pessoas continuavam a entrar, iluminando seus caminhos com celulares que cegavam quem já estava em seus lugares. Carregavam crianças inocentes no colo. Pediam licença. Não conseguiam achar os números das cadeiras. Pessoas sem crianças entraram. Um casal de adultos (acho que devo precisar) sentou no meio da 3ª fila da plateia. Imaginem o tamanho da sua inconveniência.   
Já estávamos na 3ª cena, “Amanhece na aldeia”, quando entrou uma família grande. Um homem de boné abria a coluna, com seu inocente nos braços. Atrás vinham mulheres com saltos ameaçadores. Foram sentar lá na frente. O celular; o dá licença; o desculpa... a bailarina linda, perfeita, escultural, era a rosa afinal!, empinava a uns três metros.
Sabe quando falei de roupa e vestido? Isso é coisa minha e é bobagem, ou só uma coisa menor. É como saber o garfo adequado para comer peixe (qual é mesmo?). Outro dia, ouvi Leandro Karnal falar de etiqueta no rádio como uma pequena ética e a dar exatamente o exemplo dos talheres, como exemplo menor. Concordo.  
Eu acho que não adianta nada levar as crianças a verem A Bela e a Fera se a gente não acredita na importância da vitória da Fera, ou seja, na recuperação da humanidade. Não adianta levar a concerto, se vamos sacar o maldito celular para fotografar, quando minutos antes o autofalante disse com delicadeza que é proibido, dando como explicação (precisa?) o fato de que atrapalha o artista. O artista que ensaiou, que machucou o pé, o dedo, que se apertou no figurino, que fez dieta, que teve de sorrir e beijar quem odeia em cada ensaio para nos convencer daquele amor. E há as crianças, elas veem... o que fazemos.
Eu tive vergonha daquelas numerosas pessoas com suas crianças nos braços. Não acredito em sua boa intenção de levar em ballet, no seu conceito de atividade cultural, no seu sapato caro, no seu vestido ou no seu boné. Talvez acredite no boné, afinal sempre protege do sol que brilha dentro do teatro.
Por mim, impedia a entrada dos atrasados no teatro. Sou cruel? Não sei reconhecer que imprevistos acontecem? Acontecem e é importante dizermos às crianças que, por causa do imprevisto e de nosso atraso, vamos perder o espetáculo. Não tenho pena da frustração? Acho a frustração muito constitutiva e não temo a lágrima. Eu choro.
Acho que a filha mal piscou, como todas as crianças que vi. Ela só é extraordinária para mim. Houve um momento, entretanto, em que interrompeu o silêncio, puxou meu braço e disse baixinho que tinha certeza de ter achado a amiga entre as pétalas da rosa!!! Sorriu feliz, extasiada de reconhecimento. Fez sol no teatro, mas eu não precisei de boné.


A foto não é do Guaíra, é do Scala de Milão, onde o público também dá "espetáculo" rsrsrsrs.




[1] La Belle et la Bête, que li em 2010, na França.

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