segunda-feira, 23 de maio de 2016

Amar as palavras

Já incluí o Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira em várias disciplinas e cursos, tudo para ter os excelentes pretextos de conversar sobre a obra e de disseminar a sua importância para outras pessoas. Entre as páginas 30 e 31 da minha edição, Bandeira alude à lição de Mallarmé (1842-1898) de “que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e sentimentos” e tempera o postulado com a sua própria convicção de que é, entretanto, “pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia”. Eu tenho mania de palavras e também acho que a poesia é “feita de pequeninos nadas” (p. 33), cheios de valores musicais!
Chamo de mania de palavras o prazer que sinto em repetir para mim mesma, só na mente ou num sussurro, algumas palavras; chamo também de mania a minha incontinência em repeti-las por aí, para quem não tem a menor chance de escapar. Assim, algumas pessoas sabem que adoro a palavra ventarola, uma palavra que preenche a boca!
Minha mania não está restrita à língua materna, afinal tem coisa mais linda que animaux? No singular não tem a menor graça... Acho que, quando a palavra animaux acaba, ela restaura na boca um muxoxo infantil. Aliás, a palavra boca é belíssima, mas bocha em occitano é muito mais, sobretudo na voz de Adolfo Osta, quando canta “Can l'erba fresch' e.lh folha par” de Bernart de Ventadorn. É também fato que a percepção dos outros sobre a nossa própria língua reinveste a beleza de vocábulos que não eram particularmente graciosos para nós. Para meu professor de francês, um francês nativo, a palavra fofinho é cheia de encanto. Por causa dele, passei a “olhar” essa palavra com outros olhos.
Há palavras, porém, que me atraem porque elas estão grudadas a outras de forma a constituírem uma unidade inquebrantável e aquele todo é em si a razão de eu viver enfeitiçada por elas. Dou como exemplo a palavra granzoal. Ela é linda, não dá para negar, mas o que dizer do contexto em que ela tem como adjuvantes as seguintes amigas: A um granzoal azul de grão-de-bico? A unidade é o verso de Cesário Verde, poema “De tarde”. O fato de granzoal ter como amiga próxima o adjetivo azul, que amplia a sonoridade fricativa, seguidas essas duas palavras de outras com oclusivas redunda em uma coisa deliciosa de pronunciar. Tente: A um granzoal azul de grão-de-bico... Eu poderia dizer isso o dia todo!
No Itinerário, Manuel Bandeira aborda emendas poéticas que promoveram versos: “Duas ou três palavras que saíram, duas ou três que entraram, eis o golpe de mestre que transformou três versos medíocres em três outros palpitantes de poesia” (p. 33). Também afirma ter aprendido muito com os maus poetas, porque neles “se acusa o que devemos evitar” (p. 33), eu acrescentaria se acusa mais claramente e acho que Bandeira não se incomodaria, pois logo depois o poeta nos diz que os versos defeituosos dos bons poetas se diluem de forma mais fácil.
Há versos que me encantam particularmente em Miguel Torga, mas muita coisa em Miguel Torga me encanta... Alguém pode lembrar que o primeiro livro que escrevi (resultado de minha dissertação de Mestrado) é sobre ele. Nesse dístico: Orfeu rebelde, canto como sou/ Canto como um possesso (poema “Orfeu Rebelde”, proveniente de livro homônimo, publicado em 1958), peço ao leitor atenção aos trechos em destaque. Se eles forem comparados, veremos que são muito semelhantes foneticamente: canto/canto e sou/possesso. Eu fiquei pensando em se não seria o caso de retirar o artigo um antes de possesso, mas depois concluí que não, pois o artigo ameniza a oclusiva bilabial /p/ de possesso. Torga, você tem razão e olha que nem sempre, como já escrevi e muita gente boa já reconheceu. Teria Torga lido o Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira?
Em outro verso de Torga, do poema “Ode à poesia”, temos esse milagre: “O mar protesta contra não sei quê”. Por que o milagre? Fale alto o verso e vai sentir as ondas rebentarem na sua boca. Esse efeito é o resultado da quantidade de oclusivas que o poeta conseguiu encaixar no verso: /p/, /t/ e /k/. Alguém pode lembrar que eu falava antes de palavras e que não há nada como animaux ou ventarola nesse verso. Devolvo a reprimenda com um gracejo: na poética medieval, palavra é verso, então...
De volta ao poema “Orfeu Rebelde”, o verso “violências famintas de ternura” sempre me emocionou. Não sei se são as suas nasais ou se é essa sensação de ter sido colocada à beira do paradoxo: violência e ternura no mesmo verso? Como o poeta mediou isso? Com uma palavra excessiva, se não é uma coisa meio mórbida achar que em faminta possa haver excesso... O fato é que eu via muita vez esse verso por aí, assim completo, mas agora eu o vejo cortado, sobrou só a feia palavra violência. Perdemos algo e não foi (só) a poesia. Antes que alguém ache que sou levada pelas semânticas, acredite que também acho sem graça o ciciar da palavra paciência, embora tenha grande interesse em cultivá-la na vida.
A minha transferência para Curitiba colaborou para a minha mania de palavras. Eu adotei imediatamente a palavra fervo. No Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, fervo é “grande desentendimento ou briga”, mas averiguei que a palavra tem um sentido mais amplo na rua, ela pode significar intensidade ou abundância. O fato é que, depois de muitos anos, acabei por descobrir no clube do livro e para minha tristeza, que a pronuncio erradamente. Ao invés do ferrrrrrrrrvo que me alegrava, eu deveria adotar o retroflexo, que ainda não consegui com autenticidade. Enfim, continuo a usar de forma errada. 
Em 1998, no primeiro recreio que vivi com uma turma de 5ª série, aprendi que em Curitiba não se merenda, lancha-se. Quando eu convidei meus alunos a merendarem, recebi uma sonora gargalhada. Merenda é uma palavra linda (e não é que está também no poema “De tarde” de Cesário?). Eu a abandonei em situações públicas, mas não a esqueci e aqui lhe presto homenagem. Adotei, porém, piá, que pensei primeiramente tratar-se de um pássaro e penal, não no sentido de pena judicial, mas no sentido de estojo de guardar lápis, até porque estojo é uma palavra danada de feia.
Passei minha gravidez indecisa entre dois nomes para a minha filha: Leonor e Maria Clara. São nomes tão diferentes foneticamente que eu me abismo com nossa excentricidade! Ficou Maria Clara, esse nome cheio da mesma vogal aberta e central, só com uma fora dos padrões: um “pequenino nada”, para acautelar contra a homogeneidade. 
Quando alguém me dá um mimo, eu dou um sorriso mais meigo do que quando alguém me dá um presente, palavra meio atrapalhada. Quando me sinto entusiasmada, sinto ganas de ser redundante: arrebatada e extasiada, palavras feiticeiras. Mas... eu preciso confessar que cometeria uma grande injustiça ao meu amor pelas palavras, disfarçado de mania, se não mencionasse minha paixão mais escandalosa: a palavra puta. Duas oclusivas, uma bilabial e outra alveolar; duas vogais, uma fechada e posterior e outra aberta e central... É um milagre, não uma blasfêmia.
Essa palavra tem força e é tão paradoxal quando violência e ternura no mesmo verso. Ela ofende e potencializa uma experiência positiva: como quando se assiste a um puta espetáculo! Vou enfrentar a ofensa e afirmar que acho a palavra potente em sua sonoridade. Se já fui vítima da acusação direta ou da expressão mediada pela evocação de uma mãe que é afinal a ofendida, a tal “força do sentimento” de que falou Bandeira, é provável. A recorrência de seu uso como ofensa provaria o gozo fonético, frenético e patético do ofensor? Não arrisco.
Às vezes, as palavras são desnecessárias para amar (retomo o texto da semana passada, não foi Maria Sara quem solicitou a Raimundo Silva que escrevesse uma história de amor sem palavras?) e são inocentes do nosso desejo de ofender, mas eu me vigio... Não emprego a palavra interferir, porque imagino que seguro uma espada suja do sangue alheio.  Falo de amor pelas palavras, vocábulos e versos; amor pela sua música, resultado de enfrentamentos e tréguas entre sons que vão da garganta (palavra bonita!) à bocha, até todo mundo.

Indicações:
1. Minha edição do Itinerário: BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada (4ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984.
2. GUIMARÃES, Marcella Lopes. Visões da cidade: um passeio por RUA de Miguel Torga. Curitiba: Juruá, 2001.
3. TORGA, Miguel. Poesia Completa em 2 volumes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007.

Para quem quiser ouvir a voz de Adolfo Osta (sou a maior fã dele!!!), interpretando a cantiga medieval que mencionei: https://www.youtube.com/watch?v=lt94X5Zkwvc A tradução dessa cantiga para o português será publicada no Diálogo sobre a alegria.


11 comentários:

  1. Você esqueceu de dizer "açúcar" - ai que palavra linda!

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  2. E eu esqueci de dizer que amei o texto, como sempre.

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  3. Amigo querido, açúcar é demais mesmo rsrsrsrs. Obrigada pelo seu tempo, sempre tão generoso para mim...

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  4. Texto delicioso como a palavra deliciosa !

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    1. Acho que a palavra deliciosa faz um desenho na boca! Obrigada pela leitura!

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  5. Adorei o texto e sua paixão pelas palavras. Mas o fervo não foi pronunciado errado não: seja retroflexo, arrastado, curto ou caipira, ele é sempre um fervo! No Rio, aqui ou em qualquer lugar. Beijos e boa semana!

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  6. Nossa... Gostei muito do seu blog. Se hoje sou professor, muito devo a você. Assim que puder, dá uma visitadinha no meu blog que fiz para revelar alguns dos meus poemas. Ainda estou em busca do lançamento do meu primeiro livro, mas já participei de algumas coletâneas e tive a honra inclusive de expor um dos meus poemas na exposição "Poesia Agora" no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo - antes deste pegar fogo. Até acredito que este último fato já valeu mais do que lançar um livro, mas continuo na luta... Um abraço do tamanho do universo.

    www.perigorforever.blogspot.com.br

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    1. Parabéns!!!! Vou visitar o seu blog com muito gosto. Bjs.

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  7. Beijos profe linda, querida e inesquecível...

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