segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sobre RESENHA, o texto mais generoso do mundo!

A resenha é um texto que realiza a mediação crítica de um objeto. Esse objeto pode ser um livro, um filme, uma peça de teatro, uma partida de futebol, um congresso, uma exposição etc. Ela não é exaustiva, é uma síntese; ninguém deve se sentir instado a reescrever tudo o que leu ou viu com outras palavras (vai perder para o original, experiência única!), mas fazer uma seleção de aspectos que considerou relevantes. A resenha é um texto em que o autor se revela na mediação e na seleção. Por que afirmo que é o texto mais generoso do mundo? Porque pensa no outro, no leitor, o tempo todo, ou deveria...
Eu gosto de escrever resenhas, já escrevi muitas, mesmo que elas não tenham muito valor para as pontuações da Pós-Graduação. Duas resenhas minhas recentes podem ser encontradas no meu perfil do Academia.edu: uma sobre a obra Atlantique comme pont (2012) e outra sobre a obra intitulada Les Troubadours (2013). Outro dia, publiquei aqui no blog uma resenha da obra A Tela da Dama, ensaios de Literatura, escrita por Teresa Cerdeira. Essa experiência me trouxe aqui: a um texto de reflexão sobre o tema.
Por que fazemos resenhas? Nós as escrevemos porque achamos que aquele objeto, vou me deter nos livros doravante, pode interessar a outras pessoas. Nós não chegamos à obra também sem algumas razões e, mesmo que a resenha nos tenha sido encomendada por um editor para um projeto específico, há razões para o volume ter sido encaminhado a nós. A mais forte pode ser nosso repertório. Então, o livro nos encontra e julgamos que ele pode interessar a mais gente. As nossas razões e as que antevemos nos outros convergem para revelar afinal se, em nossa avaliação, aquela obra cumpre ou não o que promete.
Uma resenha deve apresentar o livro. Se se trata de uma tradução e o tradutor é alguém que se dedica à obra daquele autor de forma continuada, como a minha amiga Maria Célia Martirani à obra de Cláudio Magris, vale a pena dispensar duas palavras sobre o trabalho realizado por esse grande mediador, que é o tradutor! No primeiro parágrafo de minha resenha de A Tela da Dama, eu me preocupo em identificar Teresa Cerdeira como ensaísta: falo de sua experiência e redefino o livro, como uma História da Leitura de categorias portuguesas. Aqui, já começo a minha mediação crítica.
Refiro as duas partes da obra e sintetizo seus capítulos. O interessado em Literatura Portuguesa que recorre à resenha que escrevi deve ser esclarecido a respeito do que vai encontrar na obra de Teresa. Se esse leitor pesquisa o século XVIII em Portugal, provavelmente não vai comprar A Tela da Dama por minha causa. Mas um estudioso da Literatura Portuguesa produzida no século XX precisa encontrar no meu texto as razões que o levarão à Teresa. O resenhista poupa tempo e dinheiro ao pesquisador/leitor! Porém, tão importante quanto apresentar o “conteúdo” da obra, foi para mim abordar a poética da autora. Com isso, esclareço ao leitor interessado que Teresa não é uma compiladora, mas uma ensaísta exigente e muito confiável. Afinal, se ela conhece todas as ideias gerais que podem ser pensadas sobre seus autores, ao seu convite: vamos um pouco mais longe?, só cabe o sim.
O gosto por essa poética de Teresa me levou a citá-la muito na minha resenha. Talvez demais... A explicação é que eu quis que o meu leitor experimentasse o texto, mas devo apontar que a citação do objeto deve ser feita com parcimônia. Eu costumo citar os textos quando gosto particularmente deles e quando resenho obras que ainda não foram publicadas no Brasil. Eu penso na angústia de quem acha que precisa de um livro que está distante: “essa angústia que há em sentir a criatura a quem se ama em um lugar de festa onde a gente não está, e aonde não pode ir vê-la” (Em busca do tempo perdido). Ah, esse Proust me adivinha... Para os angustiados, um refresco de esperança, uma frase que pode mudar tudo, danar o cartão de crédito ou salvar as nossas finanças, com um alívio: não era bem aquilo...
Critico o tamanho de minhas resenhas sempre que as termino. Volto e não corto nada... Vou explicar a verborragia com uma razão simples e uma constatação: em primeiro lugar, eu gosto de escrever, isso me leva a permanecer com as palavras e me gastar com elas, não agastar..., e demorar em amorosa visitação. A constatação é que as últimas resenhas que escrevi referem-se a livros que não foram publicados no Brasil. Isso me levou ao esforço de prover ao máximo o meu leitor com informações. A minha enorme resenha de Les Troubadours ainda tem outra razão: eu amei o livro! Esse negócio de amar leva um tempo delicado só para imaginar as declarações.
O leitor da minha resenha de A Tela da Dama descobre rápido que eu conheço a obra de Teresa. Como publiquei a resenha em meu blog, poderia até ter escrito que ela foi minha professora quando eu tinha 17 anos e que foi minha primeira orientadora. No blog, isso é possível! Mas se eu quisesse propor a minha resenha a uma revista qualificada, essas referências pessoais teriam de ficar de fora, pois comprometeriam a avaliação cega, ao identificar-me. Agora, veja bem, conhecer a obra do autor não é identificar-se, é mobilizar o próprio repertório e isso é eficaz em uma resenha. É eficaz e elegante também trazer outras referências ao texto, desde que não seja para se pavonear, afinal outros textos propõem possibilidades de relações inéditas do próprio objeto. Detalhe pseudozoológico: pavões não resenham bem, pois querem que o leitor só enxerguem as suas próprias penas.
Eu sou editora de uma revista e, muitas vezes, leio “resenhas” que na verdade são bons resumos a que o autor juntou um parágrafo final de avaliação crítica. Para mim, a diferença entre esses dois gêneros textuais primos é que a resenha é mais seletiva e crítica que o resumo, que só quer saber de descrever/sintetizar o conteúdo dos objetos. A resenha precisa ter mediação crítica do início ao fim e isso é muito mais abrangente que expressar gostei ou não gostei. Até porque, no pacto de generosidade para com o leitor que o autor da resenha deve firmar, precisa estar escrito que aquilo que não me serve pode servir a alguém. Mas é claro que o gostei ou não gostei também tem seu valor...
A resenha pode enaltecer ou derrubar uma obra, que por sua vez pode ser apreciada de formas tão diferentes quanto o número de seus leitores. A resenha é um texto fundamentado, mas pessoal, no sentido de que os juízos que ela tece partem de formações, repertórios e trajetórias diversas. Essa subjetividade bem informada impõe ao texto (e a seu autor!) uma grande responsabilidade e exige, para a sua realização, uma leitura acurada do objeto, onde análise – decomposição do objeto em partes – e síntese – recomposição da essência – são conjugadas.
Eu falei acima que a resenha vale pouco para as pontuações dos Programas de Pós... Está claro que não concordo com isso e continuo a fazê-las porque elas são importantes. Estimulo as pessoas a escrevê-las. Eu sou uma leitora de resenhas, elas poupam meu tempo na seleção do que me interessa: ajudam-me a comprar, a devassar bibliotecas e a indicar livros. Tenho um grande respeito por quem se sentou lá na sua solidão para escrever sobre um livro que pode mudar tudo o que eu achava que sabia, ou simplesmente confirmar que estou no caminho.

Se eu já li resenhas que me enganaram? Já quis mandar a conta do cartão de crédito! Mas desanimei. Afinal toda conversa guarda a possibilidade daquele equívoco do telefone sem fio da nossa infância.

8 comentários:

  1. Obrigada, minha querida e constante interlocutora! Vi seu artigo publicado na Revista Raimundo! Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Marcella, minha querida amiga. Muito obrigada pela generosidade em ter citado a minha tradução de Claudio Magris! Parabéns por essa maravilha: o seu blog! Parabéns pelo conto - que eu adorei- e por nos brindar com as suas novas "aventuras literárias"! Ti voglio BENE! Mille baci! Maria Célia

    ResponderExcluir
  3. Maria Célia linda, eu é que "ti voglio bene"!!!!! rsrsrs

    ResponderExcluir
  4. Fiz uma leitura atrasada (leia-se não no dia em que foi publicado), porém programada deste post. O título me avisou: reserve-lhe um tempo para o ler com calma. Obedeci e me surpreendi. Gostei muito Marcella! Me surpreendi pois estou acostumada com a linguagem dos livros técnicos sobre o tema. E, confesso, não gosto muito deles, já que fazem da resenha um gênero programado, muito regrado, cansativo. Você, ao contrário, conseguiu mostrar a relevância, a seriedade e, ao mesmo tempo, o prazer da resenha, com uma linguagem - erudita revestida de espontaneidade - que além de conquistar seus leitores, motiva novos autores.
    Muito bom!!!
    P.S.: Ainda estou rindo do "Detalhe pseudozoológico"!

    ResponderExcluir