segunda-feira, 28 de março de 2016

Papo entre amigos - sobre um fragmento de Lucas

Esses tempos pascais me remetem a uma dupla de que gosto muito nos evangelhos, trata-se das irmãs Marta e Maria. Lá estão elas no Evangelho de Lucas, capítulo 10, versículos de 38 a 42:

E aconteceu que, indo em viagem, [Jesus] entrou em uma certa aldeia; e uma mulher, por nome Marta, o recebeu em sua casa. E esta tinha uma irmã, chamada Maria, a qual sentada aos pés do Senhor, ouvia a sua palavra.

Eu as reconheço no Evangelho de João (11, 1-46), são as irmãs de Lázaro, que choram a sua doença, a sua morte e mandam chamar Jesus, pois aquele que ele amava estava enfermo; logo depois o evangelista corrige que Jesus amava os três irmãos. Ele também nos lembra de que Maria era aquela que “ungiu o Senhor com bálsamo e lhe enxugou os pés com os seus cabelos” (Jo, 11, 2). Ora, no evangelho de João fica mais claro, portanto, porque passando por uma aldeia qualquer, Jesus se digna a ser recebido na casa justamente de Marta e Maria. Elas são suas amigas.
Retorno ao evangelho sinóptico. Na casa das irmãs, Jesus é chamado a opinar sobre um assunto doméstico e isso para mim é o encanto do quadro. O Evangelho de João certamente exibe “vigorosa originalidade”, tanto do ponto de vista da apresentação dos acontecimentos, quando da inspiração (SIMON, BENOIT. Judaísmo e Cristianismo antigo – de Antíoco Epifânio até Constantino. São Paulo: EDUSP, 1987. p.85), mas estou interessada mesmo na cena doméstica narrada em Lucas. Muita gente conhece o problema: a chegada de Jesus distrai Maria, que fica ao pé do amigo ouvindo as suas palavras. Entendamos: trata-se de um homem interessante e com um bom papo! Marta, entretanto, está atarefada e, pior, sobrecarregada, afinal Maria não mais a ajudava. Manifestando total intimidade com Jesus, Marta pede a sua intercessão, não sem antes sutilmente apontar aquela disparidade e até provocar, se a situação não o incomodava a ele!?! É uma cobrança entre pessoas que podem dizer tudo umas às outras. Marta recebe um amigo, pois bem, mas não esquece as suas obrigações. Maria, por outro lado, acha que a visita era motivo para interromper a rotina e “jogar conversa fora”. Vejo Marta com vassouras, panos, comida que ameaça queimar e Maria entregue à doçura e ao privilégio de receber na sua casa um homem em quem podia confiar. Lázaro não está em cena, as mulheres estão sozinhas com um homem que não é de sua família.
O que faz o amigo? Aconselha! Aconselha Marta, que está cansada e inquieta, a priorizar o que realmente interessa. Talvez Jesus quisesse a presença e a atenção de Marta também! Na entrega de Maria, todavia, no seu desejo de não controlar tudo, ela teria ficado com a melhor parte.
Esses pares complementares, do dever e do prazer, são tão explorados que qualquer um de nós preencheria a sua própria lista com lembranças excelentes! Parece que, em diferentes contextos e segundo outras mais diversas necessidades, temos nos dividido entre a vontade de largar as vassouras e a necessidade de tirar o pó dos móveis...
 Eu imagino muitas reações de Marta depois que Jesus endossou o comportamento de Maria: imagino Marta virando os olhos, malcriada; desviando o rosto, enquanto Jesus e Maria riem baixinho; imagino Jesus sacudindo de leve o braço da amiga atarefada, conduzindo-a à roda da conversa; imagino Maria pegando o pano da mão da preocupada irmã e dizendo: depois a gente continua, juntas... Imagino coisas de muita cumplicidade e esta cena tem a ver com prazer e dever, como apontei, mas tem mais a ver com isso: com confiança e liberdade. Confiança no juízo do outro e na entrega; liberdade para falar e para escolher.
Eu imagino coisas nessa cena porque o narrador me dá a chance. Ele se atém ao essencial e o essencial é o drama, ou seja, a ação. Todos os dados de vassouras, panos e panelas são meus. Foi João que nos contou que a casa dos irmãos ficava em Betânia. Nem isso o narrador de Lucas nos dá! Também não sabemos o que fala Jesus e que desperta tanto interesse em Maria. Marta é mesmo a senhora da cena, da casa... Confronta Jesus, provoca e pede ajuda. Foi no duplo vocativo de Jesus: “Marta, Marta, tu afadigas-te...” que vi Jesus menear a cabeça, mas só eu vi. Quando ele afirma que “uma só coisa é necessária”, também não explica. Qual seria a “melhor parte” escolhida por Maria? Jesus ainda afirma que esta não lhe seria tirada. O fragmento acaba. São cinco versículos.
Essa atenção ao essencial e a ausência de exteriorização me lembram muito o capítulo “A cicatriz de Ulisses” de Auerbach (Mímesis). A simplicidade do quadro, a falta de explicações por parte de Jesus, o silêncio de Maria (!) e o de Marta ao final sempre me encantam e me despertam. Sei que a ressurreição de Lázaro é monumental, é uma porta escancarada! Mas eu vejo a casa de Maria e Marta por uma nesga. Por esse entreaberto, sou convidada pelo narrador de Lucas a testemunhar um duelo verbal, uma reivindicação e a apreciar a confiança, a liberdade e o mistério.

Jesus afirma que muita coisa inquietava Marta. Outra vez não alude a especificidades. Teria Marta problemas financeiros? Onde é que andava Lázaro, que deixara as irmãs sozinhas? Nada... Fica claro, porém, que Jesus sabe de quais coisas se tratava.  Eu vejo muita amizade nessa cena, em que Jesus chega sem avisar (não parece precisar), desvia a atenção de uma amiga, exaspera a outra e dá razão a quem esquece a obrigação! Teria Jesus, ao final do dia, ungido com bálsamo as mãos cansadas da sua inquieta amiga Marta? Gosto de pensar que sim.


Jan Vermeer - "Cristo em casa de Maria e Marta", séc. XVII.

2 comentários:

  1. Professora, que delícia acompanhar essa sua análise! Interessante é que a relação entre Marta, Maria e Jesus sempre me ocorre, pois lembro de minha mãe, em um passado já enevoado, que em diferentes momentos manifestou sua indignação com o conselho d'O Salvador para Marta. Ela ficava danada pensando no quanto a coitada estava ocupada e ainda diziam para ela se aquietar - mas ninguém falava algo como "então tá, eu te ajudo a terminar o serviço e depois a gente conversa"! rsrsrsrsrs! Essa análise diz muito, muito mesmo sobre a minha mãe e sua história de vida. É como você mesma comentou, a gente completa as brechas dessa história bíblica e a (re)significa.
    Muito bacana poder entrar em contato com sua interpretação!

    Grande abraço!

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  2. Muito obrigada por sua leitura. Para mim, essa cena é uma cena de muita intimidade, entre amigos que podem falar tudo um para o outro. Lindo!

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